Produção agropecuária e conservação nas Amazônias: um diálogo possível
O relato de experiências durante plenária de Uma Concertação pela Amazônia mostra como a inclusão dos produtores rurais e sua indução às melhores práticas são fundamentais para gerar renda com proteção do clima e da biodiversidade

O relato de experiências durante plenária de Uma Concertação pela Amazônia mostra como a inclusão dos produtores rurais e sua indução às melhores práticas são fundamentais para gerar renda com proteção do clima e da biodiversidade

Por Amália Safatle

Alaion Lacerda é um agricultor, natural do município paraense de Pacajá, no Pará, onde a ocupação populacional esteve intimamente ligada à construção da Transamazônica nos anos 1970. “Eu nasci e cresci vendo meus pais cultivarem a terra. E isso foi o que aprendi. Quem era apossado nos lotes tinha a obrigação de desmatar, fazer o benefício, porque senão tinha essa lei [em que a terra] era tomada e passada para outro poder trabalhar. E a terra era de onde a gente tirava o sustento, fazendo pequenas roças. A gente plantava arroz, feijão e mandioca para fazer a farinha”, relata o produtor de pequena escala. Seus seis irmãos deixaram a zona rural em busca de estudos e empregos na cidade, enquanto foi no campo que Lacerda viveu seu maior aprendizado.

Ele conta que, com o passar dos anos, as matas foram diminuindo. Sem assistência técnica, equipamentos, máquinas e tecnologia para trabalhar, enfrentou muitas dificuldades. Até que a Fundação Solidariedad, que atua na sustentabilidade de cadeias agropecuárias e inclusão de produtores rurais, chegou na região e permitiu a ele desenvolver melhores práticas produtivas. Lacerda hoje trabalha com gado e cacau no assentamento Tuerê em Novo Repartimento – uma cidade desmembrada de Pacajá que descobriu a vocação agrícola para essas atividades agropecuárias.

Por meio de um experimento promovido pelo Fundo JBS Amazônia, parceiro da Solidariedad, a propriedade de Lacerda passou a aplicar uma técnica de pastejo rotacionado, evitando a derrubada da floresta para abertura de novas áreas.

“Com a chegada da assistência técnica, eu posso muito bem trabalhar em uma área bem menor e cultivar a terra de uma forma mais sustentável, para poder criar um número de animais até maior, e não mexer nas reservas que a gente ainda tem”, diz Alaion Lacerda.

A criação bovina é combinada com o cultivo de cacaueiros, que promovem sombreamento para os animais, aumentando sua produtividade.

“Hoje, eu represento a minha família. Os meus irmãos retornaram [da cidade] e agora a gente trabalha junto”, diz ele. Mais que a família, Lacerda representa milhares de produtores rurais na Amazônia. “Vários produtores que visitam a nossa propriedade passam a conhecer as boas práticas que a gente tem adotado. Eles aprendem e implementam [em suas propriedades] também, o que tem reduzido muito o desmatamento [na região].”

Mesmo assim, “a gente é muito mal visto”, lamenta. “Somos nós que vivemos na Amazônia e dependemos da terra para tirar o sustento. Quem vive lá fora não sabe da nossa realidade aqui e nos vê como vilões. Mas, na verdade, somos batalhadores na tentativa de sobrevivência”, afirma. 

O depoimento de Alaion Lacerda ilustra muito bem a complexidade do encontro “As agropecuárias nas Amazônias”, promovido online em 14 de outubro pela plenária da rede Uma Concertação pela Amazônia, reunindo cerca de 110 pessoas. Além do agricultor, participaram do encontro Caio Penido, presidente do Instituto Mato-grossense da Carne (Imac) e membro fundador da Liga do Araguaia, movimento do Instituto Agro-Agroambiental Araguaia; Maxiely Scaramussa Bergamin, produtora rural, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Paragominas e idealizadora do movimento Rural Delas; e Renata Miranda, assessora de relações internacionais da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

O diálogo, com mediação de Marcello Brito, coordenador do Centro Global Agroambiental da Fundação Dom Cabral, foi pontuado por referências artísticas que revelam como a cultura na região é permeada pela tradição do vaqueiro e do agricultor nas suas mais diversas manifestações – do boi bumbá retratado pelo fotógrafo matogrossense Rai Reis à moda de viola sertaneja que embalou o início da plenária ao som de Viola e Rodeio, tocada por Os Violeiros da Amazônia no programa Viola Minha Viola, da TV Cultura, em 1997.

Realidade dos pequenos produtores

“O Alaion é um pequeno produtor que participou de um processo pelo qual hoje tem acesso a uma assistência técnica e a uma estrutura produtiva – mas essa não é a realidade de outros 700 mil pequenos produtores da Amazônia”, frisa Brito. Segundo ele, a pequena agricultura da Amazônia é tão abandonada e desassistida que, dos quase 900 mil assentados da reforma agrária na região amazônica nos últimos 30 anos, hoje cerca de 120 mil lotes estão abandonados. s pessoas simplesmente desistiram e foram embora, pois não lhes foi dado conhecimento, acesso a mercado e condições dignas para que eles se desenvolvessem lá dentro.

Essa situação, diz Brito, vai além dos assentados. envolve ribeirinhos, quilombolas e famílias extrativistas. Somados, são milhões de pequenos produtores em atividades que vão da mandioca ao açaí, do cupuaçu à pecuária.

Uma das consequências da falta de alternativas de renda é a migração das pessoas para atividades prejudiciais ao ambiente, como o desmatamento e o garimpo predatório, além da cooptação pelo crime organizado que se expande nas diversas Amazônias. É elementar, portanto, que o apoio a atividades produtivas com as melhores práticas socioambientais seja o caminho para o desenvolvimento da região amazônica

Sistemas inclusivos

Na visão de Renata Miranda, da Embrapa, a chave para esse desenvolvimento está nos sistemas econômicos inclusivos. Em outras palavras, significa olhar cada vez mais para as pessoas, de modo que sejam incluídas – e não expulsas – em atividades produtivas mais sustentáveis. Segundo ela, a vulnerabilidade social leva à informalidade e à ilegalidade, gerando danos reputacionais para as atividades produtivas como a agropecuária, e fazendo com que a região amazônica agrave o desequilíbrio climático e a perda da biodiversidade, em vez de se colocar como uma solução para essas crises.

Por isso, Miranda entende que, antes de debater a transição tecnológica necessária para a atividade agropecuária enfrentar a crise do clima, será preciso falar de um modelo de desenvolvimento econômico inclusivo com uma visão territorial, ou seja, que considere o uso e ocupação do território amazônico.

Nesse sentido, a secretária-executiva da Concertação, Lívia Pagotto, observa que esta plenária vem no esteio da anterior, que abordou as Amazônias pelo olhar da paisagem. As agropecuárias fazem parte da paisagem da região – a abordagem da paisagem considera que pessoas, espaço e tempo se interrelacionam em uma construção social subjetiva. Como cada pessoa tem uma relação diferente com uma paisagem, torna-se possível perceber as diferentes facetas de uma mesma realidade, compreender a sua complexidade e aprender a lidar com ela. “Agropecuária não é só um sistema de produção, é muito mais do que isso”, diz.

Que o diga Maxiely Scaramussa Bergamin, uma mulher à frente da chamada agricultura regenerativa em um dos municípios mais conhecidos pelo desmatamento no passado. Paragominas, a 300 km de Belém, era a segunda cidade madeireira do mundo, quando foi alvo da operação Arco de Fogo em 2008. Tratava-se de uma política de comando e controle do governo federal para combater o desmatamento ilegal e que, segundo ela, desencadeou uma mudança no perfil produtivo do local para a agricultura.

Scaramussa conta que até hoje têm sido colhidos frutos do projeto Pecuária Verde, implantado em 2010 com patrocínio da Vale, voltado a boas práticas socioambientais, como manejo de pastagens e cuidado com os colaboradores, ampliando a renda das propriedades rurais.

Hoje, Paragominas é a 60ª cidade brasileira mais rica no agronegócio, com o segundo maior rebanho do Brasil, ao mesmo tempo em que tem ampliado a área de proteção ambiental. “O município hoje tem 68% de Reserva Legal. E nós aumentamos também o IDH e a renda per capita, um trabalho que conta com o envolvimento muito grande do sindicato rural [dos produtores]”, diz ela, que preside a organização desde 2021.

Uma das propostas mais abraçadas no sindicato é o projeto Rural Delas, criado por ela há dois anos e meio para levar apoio social, financeiro e emocional a  mulheres ligadas ao agronegócio, seja no ambiente rural seja no urbano – desde a copeira até a gerente geral, passando por aquela que está no maquinário. Segundo Scaramussa, quase mil mulheres já foram impactadas por meio de workshops, encontros de rodas de conversa e cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).

“Em nosso primeiro encontro, trabalhamos muito a necessidade de união entre mulheres, buscando a ideia de cooperativismo e de colaboração, em vez de competição”, diz Maxiely Scaramuss

Um dos programas do projeto Rural Delas – o Elas no Campo – procura levar saúde física e emocional para essas mulheres, pois foi possível observar a falta de amparo quando estavam no campo, sem acesso a consultas médicas, nem a exames periódicos. Muitas também sofriam agressões verbais e físicas. O projeto, em parceria com a Suzano, procura dar sustentação a essas mulheres, para que possam trabalhar. “Muitas são o esteio da casa, sustentando cinco, seis, sete pessoas da família. E essa mulher precisa estar bem para poder trabalhar e se desenvolver”, afirma.

Maturidade no debate

Histórias como as relatadas por Alaion Lacerda e Maxiely Scaramussa mostram como as complexas relações entre produção de alimentos no campo, mudança no uso na terra e o bem-estar das pessoas exigem um debate mais orientado para a transformação ecológica da agropecuária, no que na polarização entre os chamados “ruralistas” e os ambientalistas.

Buscando essa sensibilização, Brito propôs na plenária um exercício de olhar para o que cada participante usava no momento. De roupas a sapatos, de óculos a celulares e computadores, ele lembrou que todas pessoas são muito dependentes de tudo que é minerado ou produzido na terra. Transformar o modo como produzir esses recursos é uma questão desafiadora, que somente será respondida por meio do diálogo.

“O modelo implementado nesses últimos 30, 40 anos trouxe sucesso em uma série de áreas. Uma revolução na produção de alimentos foi feita. De agora em diante, precisamos evoluir nessa revolução”, diz Brito, que enumera algumas questões. De que tipo de agricultura precisamos para retomar o processo de recuperação dos mananciais de água e melhorar a pegada hídrica no Brasil? Que tipo de agricultura precisa ser implementada para recuperar a biodiversidade?

“Nós já sabemos, por exemplo, que cultivos feitos próximos às zonas de Reserva Legal e florestas têm muito menos incidência de pragas e doenças e são mais produtivos. A mesma coisa se dá na produção de carne e leite em pastagens sombreadas. Nosso objetivo aqui é que todos sejam ganhadores através deste diálogo”, diz Marcello Brito

Visões entrelaçadas

Caio Penido, do Imac e da Liga do Araguaia, fala do município de Querência (MT), no Xingu, onde o bioma amazônico se encontra e mistura com o Cerrado. Nessas matas de transição, ele sabe a importância de entrelaçar visões diferentes. “Aqui, a gente faz um pouco esse papel de meio de caminho. Sempre estou mediando o diálogo entre os produtores e os ambientalistas, e às vezes são produtores ambientalistas, às vezes são ambientalistas produtores, então é uma mistura”, diz.

Penido conheceu a Amazônia aos dez anos de idade, depois que o avô comprou uma fazenda em 1978. Naquela época, o governo incentivava a ocupação na região por meio da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “Pessoas com empresas em São Paulo tinham um benefício fiscal: em vez de pagar imposto, investiam na Amazônia com o compromisso de desmatar e criar infraestrutura. Você só conseguia o título da terra se fosse bem-sucedido na empreitada”, conta ele.

Assim foram criadas as cidades Sinop, Sorriso, Querência, Água Boa – todas com o que ele chama de colonização privada, atraindo muitos colonos gaúchos, catarinenses, paranaenses, que foram para lá com o sonho de ocupar uma terra maior.

Era uma época de ocupação intensiva, desmatamento e experimentos. “Achava-se que a Querência ia para a pecuária, com isso se desmatou muita terra à beira dos rios para servir de aguada [para o gado]”, conta. Depois que a vocação do local virou para a agricultura, havia muitas terras onde era preciso restaurar Áreas de Preservação Permanente (APP), de modo a atender às crescentes exigências socioambientais, previstas em lei e simbolizadas por movimentos como as moratórias da carne e da soja. 

“De um dia para o outro, quem tinha alguma irregularidade [na propriedade] não conseguia vender para as indústrias. Querência estava na lista do Arco do Desmatamento, então foi objeto da minha primeira grande mobilização, que juntou o sindicato rural, prefeitura, ONGs e produtores, todos engajados para tirar o município da lista.” Constar na lista trazia dificuldades de financiamento, mas principalmente danos à reputação do município.

“Vi que dava para ter esse meio do caminho entre pessoas que estão dispostas a dialogar, sentar na mesa, conversar e buscar soluções. Com isso, a gente conseguiu tirar Querência da lista. Para mim foi um aprendizado”, relata Penido.

A partir dessa articulação, ele percebeu que seria possível criar um movimento na região do Araguaia e do Xingu, o que em 2014 deu origem à Liga do Araguaia, voltada a regularização ambiental, projetos de carbono, intensificação pecuária e Pagamento por Serviços Ambientais.

A fazenda da família, a Agro Penido, produz soja, milho, gergelim, feijão mungo e algodão em duas safras quase todo ano, enquanto gera crédito carbono e preserva a biodiversidade por meio do restauro de APP feito com a re.green. A partir dessa experiência, ele diz que já sabe o que precisa fazer: “O que a gente fez na fazenda, a gente implementou na Liga e está implementando agora no Instituto Mato-grossense da Carne como política pública”. O objetivo é tornar a produção sustentável e de baixo carbono, criando valor na biodiversidade, o que pode ser feito por atividades como turismo ecológico e sistemas agroflorestais. “O desafio é transformar, é criar valor real na floresta. Enquanto a floresta não tiver valor viva, vai ser complicado”, diz.

“Soluções” simples não funcionam

Frente a essa complexidade, muitos optam por caminhos simplistas, mas que não resolvem. “O caminho mais fácil é não comprar nada da Amazônia, para nunca ser corresponsável por nenhum crime”, afirma Penido. Mas não assumir essa responsabilidade acaba impedindo o desenvolvimento sustentável da Amazônia e excluindo os produtores que estão fazendo a coisa certa.

“Quem acusa o agro como um todo [de crime ambiental] está chamando para briga um monte de gente que está fazendo certo”, afirma Penido. Ele defende que se pressione o governo para implementar definitivamente o Código Florestal, enquanto se criam mecanismos de valorizar a biodiversidade.

Identificar as boas práticas agropecuárias será importante para separar o joio do trigo. Segundo Renata Miranda, da Embrapa, nem todos os pecuaristas têm interesse em implementar ações de combate ao desmatamento ilegal, como a rastreabilidade do boi. “Tem pecuária que é [serve como] poupança, tem pecuária que é lavagem de dinheiro, tem pecuária que é grilagem e tem pecuária que respeita as leis”, diz ela.

Segundo a ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, senior fellow do Instituto Arapyaú, quem faz certo tem de ser reconhecido por isso. Quem não faz certo e é informal, precisa ser incluído em um sistema que o induza às melhores práticas. E quem não quer fazer certo deve ser punido. O comprador final, para ela, tem um papel importante nessa diferenciação. “Aqui e lá fora, o consumidor tem um papel importante de entender o que está acontecendo, de não querer comprar da ilegalidade e reconhecer seu poder de influenciar e transformar a realidade.”

No campo, onde ainda resta muita informalidade, esse caminho não é fácil. Alaion Lacerda conta que a maioria dos produtores nem sabe dizer o que é rastreabilidade. Além disso, as propriedades estão, em grande parte, irregulares em relação às leis ambientais, o que inibe o diálogo com os produtores. “Quando você sabe que tem uma dívida, vamos dizer assim, você treme na base”.

Existe também um problema de burocracia para legalizar as propriedades e permitir a rastreabilidade. “Muitos não sabem como esse nó funciona, como desatar e nem por onde começar. Por isso, a gente sempre bate na tecla da assistência técnica, que é muito importante para esclarecer o produtor”, afirma. Isso mostra como a inclusão produtiva pode ser desafiadora, mas se apresenta como o melhor caminho para o desenvolvimento efetivo na região.

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