Ligando pontos na educação: por que abraçar a complexidade
Recente relatório de monitoramento do Plano Nacional de Educação (PNE) mostra a Amazônia Legal atrás do restante do Brasil, segundo uma série de indicadores. Considerando que, em 2024, o PNE trará o planejamento para os próximos 10 anos, o momento é de debater os caminhos para aprimorar a educação no contexto da Amazônia Legal. O que fazer para que a Amazônia deixe de figurar entre as piores posições no quesito educação? Esta foi uma das questões levantadas na plenária “Educação: Território de Encontros”, promovida pela rede Uma Concertação pela Amazônia, em 21 de agosto.

Debate ilumina o pano de fundo da educação no território amazônico, ao mostrar a teia de elementos relacionados com o tema. Por trás dos indicadores, estão condições de saúde, assistência social, trabalho e renda, além de uma visão colonial da sociedade brasileira, e a falta de identificação das populações locais com um sistema importado do modelo eurocêntrico

Por Amália Safatle

Recente relatório de monitoramento do Plano Nacional de Educação (PNE) mostra a Amazônia Legal atrás do restante do Brasil, segundo uma série de indicadores. Considerando que, em 2024, o PNE trará o planejamento para os próximos 10 anos, o momento é de debater os caminhos para aprimorar a educação no contexto da Amazônia Legal. O que fazer para que a Amazônia deixe de figurar entre as piores posições no quesito educação? Esta foi uma das questões levantadas na plenária “Educação: Território de Encontros”, promovida pela rede Uma Concertação pela Amazônia, em 21 de agosto.

O debate mostrou, contudo, que a pergunta não tem uma resposta simples. Com isso, ajudou a iluminar o pano de fundo dos indicadores registrados no PNE. Mostrou a existência de uma teia complexa de elementos que se interrelacionam com a questão educacional, tais como a visão da sociedade brasileira sobre o território amazônico, a reprodução das desigualdades na formação histórica do País, o contexto de vida das populações da Amazônia Legal em relação à saúde, à assistência social, ao trabalho e à renda, e até mesmo o grau de identificação dessas populações com um sistema educacional importado do modelo eurocêntrico, que desconsidera as peculiaridades socioculturais e ambientais das diversas Amazônias.

Debater a questão educacional na Amazônia Legal, portanto, significa abraçar essa complexidade e interligar temas – exercício presente no mais novo documento lançado pela Concertação, Propostas para as Amazônias – Uma abordagem integradora, lançado no início de agosto na Cúpula da Amazônia, e que inicia pela temática da educação uma série de aprofundamentos, tanto por meio desta plenária, como pelo caderno temático Educação em perspectivas.

Do “território de encontros” que a plenária propiciou, participaram Alexsandro do Nascimento Santos, diretor de políticas e diretrizes da Educação Básica do Ministério da Educação (MEC); Wilmara Cruz Messa, diretora do Centro de Mídias de Educação do Amazonas (Cemeam); e Alcielle dos Santos, diretora do Instituto iungo e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República.

Para iniciar esse debate, Santos propôs uma visão nítida sobre a relação entre a produção de políticas educacionais e o território amazônico. Apesar dos avanços nas últimas décadas, o diretor do MEC avalia que essas políticas continuam marcadas por uma visão hegemônica das regiões Sul e Sudeste. Essa visão, que ele chama de colonial, classifica a região Norte e a Amazônia Legal como territórios de falta, territórios de ausência, territórios frágeis e secundários.

“O Brasil tem produzido um projeto de nação – e de educação pública atrelado a este projeto –, que desconsidera as potências do território das Amazônias, assim como desconsidera as potências do território nordestino, o que produz o fracasso educacional nessas regiões. É tautológico. Como a política educacional já considera de partida que esses territórios são territórios da falta, o desenho da política é produzido para reafirmar esse diagnóstico na saída”, afirma.

A seu ver, o Brasil continua produzindo fracasso escolar devido a esse olhar colonial da política pública de educação. “Eu me alinho àqueles e àquelas que têm proposto um giro decolonial na produção de política educacional”, afirma. Santos explica que isso vai além de promover um giro decolonial no currículo, o que geralmente se faz convocando a presença de vozes, corpos e de territórios ausentes. “Isso não basta. Nós precisamos de um giro na produção e implementação de políticas educacionais, que nos permita visibilizar e mobilizar a potência de sujeitos que estão invisíveis, excluídos e foram silenciados nesse processo.”

Segundo ele, este é justamente o papel fundamental das Amazônias: ajudar o Brasil a ver outro Brasil, a enxergar outras formas de viver, de ver e de conviver no mundo. Isso leva a produzir políticas educacionais a partir de outros parâmetros, que considerem a vida na floresta, a vida próxima aos rios, a vida nas cidades amazônicas. Especificamente quanto à política de educação básica, Santos identifica a sobreposição de três camadas de dificuldades e desafios: o acesso, a permanência e a conclusão do ensino.

Em relação ao acesso, os povos originários, os quilombolas, e quem vive no campo e na floresta são as populações que a política pública mais encontra dificuldade em trazer para a escola. Há problemas de infraestrutura – por exemplo, cerca de 74% das escolas quilombolas estão classificadas em nível ruim ou muito ruim. Mas, além disso, deve-se questionar em que medida a escola se relaciona com a vida de crianças, adolescentes e jovens desses grupos populacionais. “O significado da escola para essas populações se inscreve em uma cosmovisão específica que precisa ser considerada”, diz.

O mesmo se dá em relação à permanência na escola. Quando se avança na escolarização, a evasão é crescente porque, na avaliação de Santos, a escola não faz sentido para aquelas vidas e falta um cuidado, por parte da política pública, de proteger as trajetórias escolares dos grupos mais vulnerabilizados da sociedade.

“Essa proteção deve partir de um esforço intersetorial”, defende ele. “Isso significa investimento em política de saúde, em política de assistência social, em política de trabalho e renda. Porque, se a família enfrenta o dilema de sobreviver ou manter o adolescente na escola, nós sabemos qual a resposta cada um de nós daria e que as famílias costumam dar.” Tal ação intersetorial, por sua vez, demanda que estados e municípios dialoguem entre si, sob a coordenação interfederativa do governo federal.

Escola conectada ao território

Embora os exames de avaliação externa sejam importantes e tenham um lugar na política educacional, Santos propõe reavaliar quais saberes fazem sentido, considerando as múltiplas realidades da Amazônia Legal. “Que currículo é esse que faz sentido para quem vive nos territórios da Amazônia Legal? E quais aprendizagens precisam ser privilegiadas?”. Ele também entende que a escola é um dos espaços de aprendizagem e desenvolvimento humano, mas não o único, e ganha em potência na medida em que se conecta aos territórios onde se situa.

“A escola se torna cada vez mais significativa para um menino, uma menina, uma família, quanto mais eles a enxergarem em uma rede de proteção social, aprendizagem e desenvolvimento integral. Quando a escola se conecta com o que acontece nos movimentos sociais do território, com os esforços de cultura e com o que acontece no posto de saúde, é pensada como um ponto de uma rede. Gosto da metáfora da rede, porque a rede ampara, a rede não deixa cair, a rede segura. E na rede não existe essa história de que um ponto é mais importante que o outro”, diz o diretor do MEC.

Território e intersetorialidade são citados por ele como os pilares da política de educação integral, o que leva a um desenho de política que deixe as comunidades escolares, os municípios e os estados com alto poder de decisão sobre como implementá-la. “É preciso confiar nas escolas, nos professores e professoras, nos gestores e gestoras, e acreditar que eles são capazes de tomar boas decisões sobre como implementar uma agenda de educação integral no território, enquanto o MEC ocupa um lugar de assistência técnica e financeira, afirma.

Universalização do ensino e diversidade

Marcela Bonfim, fotógrafa radicada em Porto Velho e criadora do projeto Amazônia Negra, diz que “entre ideia e lugar existem muitas Amazônias. Porque são muitas, tantas, que para quem vive do lado de dentro, diversidade não é só possível, é real”. A partir dessa fala, como trazer todo mundo para dentro da escola? Esta foi a provocação lançada durante o debate para Wilmara Cruz Messa, do Cemeam.

Criado em 2007, o Centro de Mídias é uma iniciativa do governo do Amazonas que lança mão da tecnologia para vencer as imensas distâncias do território e aumentar o acesso e a permanência de alunos da Educação Básica, especialmente nas comunidades mais remotas. Para isso, as aulas são preparadas por professores especialistas e elaboradas por uma central de produção educativa para a tevê, transmitidas todos os dias, via satélite, para as salas de aula, permitindo acesso à videoconferência e interação de áudio e vídeo.

Segundo Messa, essa tecnologia proporciona a interação em tempo real entre professores e estudantes. Ao longo dos anos, a plataforma atingiu 300 mil estudantes e está presente em 2.300 salas de aula. São atendidos por ano 27 mil a 30 mil alunos em comunidades ribeirinhas, Unidades de Conservação e Terras Indígenas.

“Temos 73 professores especialistas que dão conta de todos os componentes curriculares, 17 pedagogos que fazem essa verificação, e uma produtora que coloca em prática tudo aquilo que nós pensamos. Esta foi a forma que o governo do Amazonas encontrou para gerar equidade na educação”, afirma Messa.

Até o momento, o esforço do Cemeam tem sido em vencer as distâncias para buscar a universalização. No entanto, segundo ela, elaborar currículos específicos para as diversas populações ainda não foi possível. “Mas isso já está sendo tratado para 2024 e 2025”, diz.

Embora este não seja um ponto de consenso entre educadores, Santos, do MEC, considera importante evitar a padronização e a homogeneização dos currículos. “Contextos altamente desiguais, quando confrontados à padronização de políticas, tendem a reproduzir e ampliar desigualdades”, afirma.

O MEC está revisando a política do Ensino Médio, que havia passado por uma reforma durante o governo Michel Temer, no sentido de reduzir a formação geral básica e introduzir itinerários formativos, escolhidos pelos alunos. Neste governo, a proposta é retomar a formação geral básica, e realinhar os itinerários para que contenham os saberes necessários a cada contexto.

“O ministério precisou fazer um processo de abertura do diálogo democrático com a sociedade, para escutar as múltiplas realidades que estavam ocupando o Ensino Médio brasileiro e entender o que era preciso corrigir. Isso foi feito. Recentemente, apresentou os principais pontos de alteração da política instituída pela Lei nº 13.415.17”, diz Santos. “Nós estamos pensando uma política nacional para o ensino médio à altura das juventudes brasileiras, no plural. Essa juventude plural experimenta desigualdades radicais em seus modos de ser e existir. A política precisa olhar para essa multiplicidade, para que exerça um papel equalizador.”

Amazonizar as escolas

Para Alcielle dos Santos, do Instituto iungo, a proposta da política pública dos itinerários formativos foi de criar percursos de aprofundamento atraentes para os estudantes e com espaço de escolha, para eles também participassem da composição desse currículo, ajustado às suas vivências e a seus interesses.

Se nem sempre o ensino brasileiro contempla a Amazônia, que a Amazônia vá às escolas brasileiras. Segundo ela, o programa Itinerários Amazônicos, lançado em meados de agosto, foi concebido por meio de uma parceria entre o iungo, o Instituto Reúna e a Uma Concertação pela Amazônia, no sentido de povoar de Amazônia as escolas do País. Ela lembra que essa proposta se alinha à fala da secretária nacional de Educação Básica, Kátia Schweickardt, de que é preciso “amazonizar” as escolas.

O programa fundamenta-se em uma matriz curricular desenhada por especialistas e traz entre seus macro temas questões como biodiversidade, sociodiversidade, geopolítica e economias da Amazônia. Foi concebido por uma equipe de 120 pessoas composta por especialistas, educadores e jovens, sendo que mais da metade era da Amazônia Legal.

“Oito secretarias de estado na Amazônia Legal já adotaram os Itinerários, podendo alcançar 3 mil escolas, então teremos oito diferentes desenhos de implementação. Essa possibilidade de customização é outra riqueza do programa. O material pedagógico também é utilizado nos processos de formação continuada. Isso faz com que sigamos aquilo que o Alexsandro propôs: confiar nos professores e na potência que eles têm”, diz.

Em referência às ilustrações de Hadna Abreu que compõem o documento da Concertação Propostas para as Amazônias, Alcielle Santos afirma:

“Existe toda uma rede fúngica que precisamos nutrir para alimentar a educação em tantas necessidades e tantas especificidades. E nós todos precisamos ser solo para isso. Quando fazemos esse movimento, buscamos a construção de convergência. O momento político atual do Brasil em educação requer isso de todos nós.”

Parte importante do debate sobre educação deverá ocorrer na Conferência Nacional Extraordinária de Educação (Conae), que terá como o tema “Plano Nacional de Educação (2024-2034): Política de Estado para garantia da Educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável.” A etapa municipal da Conae inicia-se em 29 de outubro, seguida pela estadual, até 19 de novembro de 2023. Já a etapa em âmbito nacional está prevista para 28 a 31 de janeiro de 2024.

“A Conae é o campo mais importante para discutirmos que qualidade queremos na educação”, diz Alexsandro Santos. “Vamos fazer esse movimento democrático que sempre marcou os momentos em que o campo progressista esteve no governo. Esse é o momento para colocarmos em pauta as questões de qualidade a partir das múltiplas perspectivas, inclusive as da Amazônia Legal.”

Um dos desafios a encarar é a crescente tentativa de aumentar a influência da religião e das forças militares nas escolas, não só amazônidas, como brasileiras. “Nós temos de enfrentar o autoritarismo religioso e a militarização das escolas questionando para que a escola serve. Se é verdade que ela serve para formar cidadãos autônomos, críticos e reflexivos, não se pode trazer para dentro dela processos de disciplinarização dos corpos, das identidades e das mentes”, afirma Santos.

O recado já vinha do músico e compositor acreano João Donato, morto em julho passado, e que a Concertação homenageou na abertura da plenária ao reproduzir a música Amazonas, na voz de Nara Leão: “Como a garça voa livre pelo espaço/ Vou descer meu rio abaixo de canoa/ Vida boa de ter tempo pra sonhar/ Vou ser livre/ Como livre vai correndo o Amazonas/ Na canoa deslizando em suas ondas/ Vou seguir o seu caminho para o mar.”

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