Diversidades urbanas nas Amazônias
Mais de 70% da população na Amazônia habita as zonas urbanas, afetadas pela crise climática e por problemas socioambientais e de ordem institucional. Mas é nesse lugar de circulação de ideias e pessoas que surgem as maiores oportunidades de encontrar soluções estruturantes. Compreender os múltiplos contornos da realidade urbana é o começo para lidar com o rico cenário de complexidade da região

Mais de 70% da população na Amazônia habita as zonas urbanas, afetadas pela crise climática e por problemas socioambientais e de ordem institucional. Mas é nesse lugar de circulação de ideias e pessoas que surgem as maiores oportunidades de encontrar soluções estruturantes. Compreender os múltiplos contornos da realidade urbana é o começo para lidar com o rico cenário de complexidade da região

Por Amália Safatle

Quando você pensa em Amazônia, o que logo lhe vem à cabeça? Possivelmente, a exuberante floresta tropical, única no mundo e ameaçada por exploração predatória, desmatamento e queimadas. Embora a floresta ocupe o imaginário, é nos tecidos urbanos da região amazônica que a maior parte da vida em sociedade acontece. Mais de 70% da população na Amazônia habita as zonas urbanas, afetadas pela crise climática, pela falta de saneamento e da destinação correta de resíduos, e por problemas sociais ligados à educação e saúde, além de obstáculos de caráter institucional e de ordenamento territorial, entre outras mazelas.

Mas é nesse lugar de circulação de ideias e pessoas que surgem as maiores oportunidades de encontrar soluções estruturantes para a região, por meio, por exemplo, do desenvolvimento da Ciência, Tecnologia & Inovação e da busca de uma economia de baixo carbono, com inclusão social e conservação da biodiversidade.

Como tudo na Amazônia, a sua realidade urbana é plural e complexa. Daí o título “Raízes e Horizontes: Diversidades Urbanas nas Amazônias”, que nomeou a segunda plenária realizada este ano pela rede Uma Concertação pela Amazônia, reunindo mais de 100 participantes online em 29 de abril. A diversidade foi acolhida também pela tradução em libras, que a partir de agora estará presente em todos os encontros do hub.

Como já ensinava a geógrafa Bertha Becker, a Amazônia não se divide de forma estanque entre o rural e o urbano, a floresta e a cidade, como ocorre em outras regiões do Brasil. Há gradações e intersecções que tornam o território mais complexo de administrar do ponto de vista político-administrativo.

Somado a esse desafio, houve nas últimas cinco décadas uma aceleração da urbanização com crescimento demográfico e criação de municípios. Entre 1960 e 2010, dos 2.800 novos municípios no Brasil, 245 foram criados na região, que abriga ao todo mais de 800. Neles vive a maioria do contingente populacional de 28 milhões de pessoas, sob condições socioeconômicas muitas vezes inferiores à média nacional.

Matéria-prima criativa

Este ambiente urbano tão desafiador das cidades amazônicas, que parece “engolir” as pessoas, serve de matéria-prima criativa para artistas como a manauara Kerolayne Klembin, que se autorreferencia como Dacordobarro. Este é o apelido que ganhou aos dois anos, quando vivia em uma palafita e caiu em um poço de barro, tendo sido reanimada pela mãe. Ela fez da alcunha seu nome artístico, que remonta ao lugar onde nasceu, renasceu e cresceu como um corpo negro, de dimensão maior do que as dificuldades enfrentadas.

Sua obra é caracterizada pela sobreposição de imagens, em que ela frequentemente se retrata de forma gigante em meio às ruas. “Maior que as muralhas que criaram ao meu redor” é, inclusive, o nome de uma de suas obras, as quais levaram inspiração para a plenária e passaram a compor a linguagem artística da Concertação.

“Maior que as muralhas que criaram ao meu redor”, 2020

Durante o encontro, as obras de Dacordobarro pontuaram as falas dos demais convidados: Luly Fischer, professora de Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA) membro do Programa de Pós-Graduação em Direito e Desenvolvimento da Amazônia; Francisca Arara, secretária extraordinária dos povos indígenas do Acre; e Eduardo Celestino, geógrafo na Secretaria de Planejamento de São Luís e professor na Universidade Estadual do Maranhão.

Juntos, eles mostraram os desafios enfrentados no planejamento urbano, em um contexto de crise climática, em meio à premente necessidade de adaptação, e como tudo isso afeta o desenvolvimento socioeconômico nas diversas configurações territoriais da Amazônia.

Múltiplos contornos

Antes de mergulhar no tema do planejamento urbano, contudo, é preciso compreender os contornos de um lugar tão multifacetado. As cidades na Amazônia, segundo Fischer, foram constituídas em momentos históricos distintos entre si, com dinâmicas socioterritoriais e contextos socioculturais próprios, destacando a região do restante do País. A Amazônia em si comporta diferentes geografias, como a da costa atlântica, a de áreas de campos e de cerrados, a de florestas secas e a de florestas inundadas.

Além disso, há pelo menos três categorias de cidade. A primeira é originalmente dependente de transporte fluvial, como as clássicas cidades ribeirinhas localizadas de forma estratégica por causa da navegação, do poderio militar e manutenção de fronteiras, que se tornaram corriqueiras a partir do século XVII.

Mais recentemente, a partir da década de 1950, surgiram aquelas ligadas ao eixo rodoviário, que introduziu novas dinâmicas socioeconômicas fortemente influenciadas por subvenções econômicas do Estado. As cidades rodoviárias estão relacionadas ao chamado Arco do Desmatamento e a uma maior pujança econômica, por abrigarem atividades de mineração e agropecuária. O terceiro tipo são aquelas cidades que conjugam as duas dinâmicas – o sistema rodoviário e o sistema fluvial – como Manaus, Belém e Santarém (PA).

Em todas elas, Fischer trabalha com o conceito de contínuo. Com experiência em Direito Fundiário, Direito Urbanístico Ambiental e Ordenamento Territorial, ela explica que o município precisa ser planejado considerando o território como um todo e a ideia de uma urbanização extensiva. “As cidades sempre foram muito importantes na região amazônica como pontos de infraestrutura, acesso e circulação de ideias. Hoje temos um intrincado processo no qual existem muitos fluxos contínuos entre o rural e o urbano”, diz. Ela conta, por exemplo, que é comum uma pessoa ter duas casas, e passar uma parte do tempo em uma região ou em outra, ou que a família resida em um perímetro urbano, mas as atividades dos pais sejam executadas no interior.

Essa lógica de urbanização extensiva, presente especialmente em municípios pequenos, não necessariamente corresponde com a ideia da quadrícula, da quadra lote, da cidade mais industrial usada em todo o País. Essa diferença impacta a implementação de políticas públicas estruturantes para uso e parcelamento do solo e acaba por gerar conflitos. “Seria necessário criar uma legislação específica para acomodar essas dinâmicas que não são amparadas pela maior parte da legislação”, diz a professora da UFPA.

Há mais um complicador: a região começou a sofrer um processo de federalização a partir da década de 1930, chegando no seu auge nos anos 1970, e que continuou na década de 1990. Há estados na Amazônia Legal em que praticamente todo o território é federalizado, como Roraima, Rondônia, Acre e Amapá; e em muitos predominam áreas federais, como Pará e Amazonas. Mas em nenhum há predominância de áreas estaduais e municipais.

Isso faz com que os municípios e os estados não tenham gerência de execução sem autorização expressa do poder público, levando à dependência de doações que precisam passar pelo Congresso Nacional. Segundo ela, isso gera impactos em diferentes estruturas de gestão, especialmente a logística, relevante para garantir funções sociais da cidade.

Obstáculos para investimentos

Imperam, portanto, uma alta complexidade regulatória e uma inadequação dos marcos normativos nacionais. Não existe um olhar do ponto normativo para organizar o uso e parcelamento do solo ligado a essa realidade. “Em geral, essas atividades estão muito fora da realidade do debate nacional. Há um baixo controle territorial dos municípios em razão da incapacidade de realizar o poder de polícia e o controle do uso e parcelamento do solo, e até mesmo a tributação dessas áreas, por serem predominantemente federais”, resume Fischer.

Além de terem grande extensão territorial, os municípios possuem baixa capacidade institucional instalada no âmbito local, ou seja, faltam equipamentos e pessoas habilitadas tecnicamente para realizar atividades das mais básicas, reduzindo a capacidade do município de implementar uma política pública que faça jus à alta complexidade da região. Às vezes uma atribuição é repassada para a iniciativa privada, mas atividades como segurança pública e ordenamento territorial não são possíveis de serem realizadas pela iniciativa privada sem intervenção do poder público. Este também é um fator de ampliação de conflitos socioterritoriais.

Tudo isso dificulta a implementação de políticas públicas e investimentos com a segurança necessária para que um empreendimento possa florescer, o que prejudica diretamente o desenvolvimento de uma nova economia da floresta, ou de uma economia de baixo carbono.

“Os investimentos na região necessitam de uma infraestrutura mínima. Isso exige uma intervenção direta do Poder Federal ou uma descentralização assistida para municípios e estados possam executar as suas políticas públicas conforme dita a nossa Constituição”, defende Fischer.

Ela ainda chama atenção para a importância da regularização fundiária, que inclui delimitar o perímetro urbano, dar nome às ruas, dar número às casas, e permitir que cheguem os Correios e os serviços públicos, como energia elétrica. “Existe uma camada da regularização fundiária na Amazônia, chamada de estrutural, que é dar um primeiro mapa para um determinado município. O governo federal, por exemplo, poderia ajudar muito com o sistema cartográfico, porque o que falta muitas das vezes é a cartografia”, diz.

Essa institucionalização, segundo ela, ajudaria a coibir a violência. “Essas regiões têm muita violência e crime, porque quando você não consegue acessar o sistema institucional, acaba partindo para outros meios.”

Adaptação à crise climática

Em colagem de 2021, Nacordobarro aparece sentada tomando banho de cuia, acima de uma rua que alaga quando chove, pois foi pavimentada sobre um rio. Araras de cores vivas sobrevoam os casebres pálidos. A imagem da obra remete ao tempo em que ela não tinha água encanada em casa e ilustra a vulnerabilidade social e ambiental dos cidadãos de menor renda, em um contexto de crise climática.

“Água é leite materno”, 2021

Agravadas pelo El Niño, cheias históricas no Acre sucederam período de seca extrema e colocaram 17 dos 22 municípios do estado em situação de emergência em fevereiro deste ano. Cerca de 14 mil pessoas foram afetadas, exemplificando o quão suscetíveis estão os amazônidas diante do clima, em especial os povos indígenas, as populações tradicionais e as que vivem em áreas de baixio.

A secretária estadual Francisca Arara, não esconde sua indignação: por que um estado que tem 14% de seu território formado por Terras Indígenas e tem planos de gestão para suas florestas é dos mais impactados pelos efeitos da crise climática? Bastante próxima ao tema climático, tendo participado de grupos de trabalho técnicos relacionados ao tema de Redd+ no Ministério de Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Francisca é do povo Arara, da aldeia Foz do Nilo, localizada em Porto Walter (AC), distante 640 quilômetros de Rio Branco. No chão da floresta, sente a mudança do clima na pele.

Além do calor extremo e das enchentes, as populações vulnerabilizadas no Acre têm sofrido com a dificuldade de produzir alimentos nos roçados, com a falta de água nas cacimbas aterradas pela enchente, com escolas perdidas e a maior incidência de doenças.

A secretária, graduada em Pedagogia e em Ciências da Natureza pela Universidade Federal do Acre, e informa que das 36 Terras Indígenas do Acre, 29 têm planos de gestão territorial e ambiental voltados à conservação da floresta, o que impõe um custo significativo. “Mas quem quer pagar essa conta? Ninguém quer”, diz. A conta acaba sendo “paga” pelas pessoas na forma de externalidades negativas, ou seja, sofrem as consequências de ações e decisões para as quais não contribuíram. “Mesmo a gente preservando e mantendo a floresta em pé, quem sofre os impactos mais frequentes são os povos indígenas e as populações tradicionais.”

Diante disso, o Acre traçou um plano de adaptação de 10 anos para os povos indígenas. Com base nisso, a secretária busca apoio para ações mais emergenciais e também para o médio e o longo prazos.

“Não há mais tempo para ficar estudando sobre os indígenas, fazendo pesquisa sobre os indígenas. A gente precisa agir. O problema está aí, o diagnóstico está feito, as necessidades estão postas. Temos que conversar menos e agir mais”, afirma Francisca Arara.

Impacto em populações tradicionais

Outra população amazônida vulnerabilizada diante da crise climática são os quilombolas. O Maranhão, que tem 80% de seu território pertencente ao bioma amazônico, é o segundo maior estado da federação em número de quilombolas de acordo com os resultados do Censo 2022, como nota Eduardo Celestino, da Secretaria Municipal de Planejamento e Desenvolvimento de São Luís.

Ele conta que o impacto da mudança climática sobre comunidades tradicionais foi objeto de um estudo, financiado pela organização humanitária Plan Internacional, na região sul da ilha de São Luís. O estudo adota a metodologia do mapeamento participativo, valendo-se da cartografia social para tentar primeiro identificar mudanças ao longo do tempo da relação entre o ambiente, com a prática, a vivência dessas comunidades para identificar alguns possíveis impactos já gerados pela mudança climática.

A pesquisa parte de um diagnóstico em escala global, por meio do sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês), que mostra os impactos da elevação do nível do mar para regiões costeiras, mas com graus diferenciados.

“A vulnerabilidade é diretamente proporcional à dependência das comunidades às práticas de subsistência conectadas a recursos sensíveis ao clima”, diz Celestino.

Em todas as comunidades envolvidas no projeto foram identificadas questões ligadas à desestruturação de atividades econômicas ligadas à bioeconomia. Luly Fischer aponta que muitos dos produtos florestais, como o cacau e o açaí, já estão sofrendo com processos ligados ao aquecimento global por conta da salinização da água com a subida do nível do mar. “Muitas das palmeiras que existem aqui são de regiões estuarinas. A salinização dessas regiões [com a entrada de água salgada] mata a agricultura dessas áreas”, explica.

O aumento do nível do mar, segundo ela, pode não afetar tanto as populações ribeirinhas do ponto de vista de habitação, dado que estão aptas a viver em regiões alagadiças e em casas-barcos, mas impacta profundamente a produção de alimentos e a bioeconomia. “Políticas de desenvolvimento têm que levar em conta a adaptação climática, com muito investimento em biotecnologia, para que essa produção possa ser viável”, diz.

Não bastasse esse impacto, o próprio conjunto arquitetônico de São Luís, reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade, está em perigo, como mostra Celestino. Em um cenário drástico de aumento da temperatura global em 4 graus, o Centro Histórico de São Luís fica submerso, sem falar em sítios arqueológicos e vestígios de povos indígenas que ainda não foram descobertos e também seriam perdidos.

De costas para a floresta?

Uma observação recorrente sobre cidades amazônidas é de que elas viraram as costas para a floresta, como se as pessoas não quisessem o contato com a natureza. “As costas não foram viradas porque as pessoas quiseram, e sim porque houve uma indução pública para isso acontecer”, afirma Fischer.

Um exemplo disso é quando as Forças Armadas se instalaram na década de 1940 na Amazônia – Alcântara, no Maranhão, tem uma base militar da Aeronáutica – e usou-se agente laranja para desfolhar a área e evitar doenças como a malária. “É difícil viver dentro da floresta. Por isso que existe uma alternância de espaços conforme a sazonalidade, porque são ambientes bastante inóspitos, inclusive para a população tradicional”.

Além disso, diante da falta de regularização fundiária e de infraestrutura, historicamente faltam atendimento médico, educação e atividades geradoras de renda suficientes em áreas rurais, houve a migração de famílias inteiras para as áreas mais pobres das cidades, levando a uma densidade demográfica tão grande que impediu qualquer tipo de arborização urbana. Segundo ela, esse processo iniciado na década de 1970 se soma a fenômenos atuais, como a busca de rentabilidade do mercado imobiliário, na lógica de grandes loteamentos com um mínimo de espaço público, o que também aparta as pessoas das árvores.

Por outro lado, há cidades no interior que mal têm comércio, porque todas as famílias criam galinha, têm árvores frutíferas e os lotes menores são de 3 mil a 4 mil metros quadrados, permitindo a agricultura urbana em uma economia de subsistência, complementada por atividades laborais e benefícios concedidos pelo governo. “Nesses lugares há relação muito forte com a natureza”, diz. (Para saber mais sobre as relações entre cidade e natureza na Amazônia, acesse o projeto Manaus de Frente para a Floresta, apoiado pelo Instituto Arapyaú, entre outras organizações.)

“Isso quer dizer que a relação entre natureza e cidade na Amazônia também não é homogênea. Há recortes de classe, de tipologia de cidade e de momentos históricos”, diz a professora da UFPA, mostrando, mais uma vez, que não existem respostas binárias para a complexidade amazônica, o que faz da realidade local um cenário muito mais rico do que cabe no imaginário.

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