Por Magali Cabral
O custo da tão esperada transição energética para suprimir as emissões de carbono na atmosfera e limitar o aquecimento global 1,5 grau até 2050, extrapola a dimensão financeira, principalmente em regiões social e ecologicamente vulneráveis, como a Amazônia. A experiência mostra que, quanto maior a produção de energia renovável, maiores têm de ser as atividades de mineração, incluindo não só os metais mais estratégicos à transição, como lítio, níquel, cobre e terras raras (conjunto de elementos químicos de difícil extração, normalmente encontrados misturados a minérios), mas também os mais tradicionais, como aço e alumínio. Sem falar nos impactos socioambientais negativos provocados pela instalação de placas fotovoltaicas ou hélices eólicas em áreas florestais.
Essa temática foi abordada no encontro Energia e Floresta: perspectivas da transformação ecológica para as Amazônias, realizado pela iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, em 11 de dezembro. Com mediação das secretárias executivas Fernanda Rennó e Lívia Pagotto, o debate virtual contou com audiência de mais de 70 pessoas e participação nos painéis de representantes do governo federal, da sociedade civil e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
“Se o mundo quiser que a transição energética avance rapidamente para alcançar a emissão zero em 2050, estudos mostram que a produção de recursos minerais em 2040 precisará ser seis vezes maior do que é hoje”.
Quem traz o alerta é o sociólogo Bruno Gomes, fundador da Humana, agência especializada em desenvolvimento territorial, e facilitador no Grupo de Trabalho de Mineração da Concertação, ao introduzir o tema no evento. No caso dos minerais críticos à transição, como o lítio, as ordens de grandeza são ainda mais espetaculares. “Fala-se em 10 a 15 vezes mais produção”, informa. Tais minérios são usados na manufatura de baterias e outros equipamentos de armazenamento e infraestrutura.
Entre os muitos dilemas que surgem do trade off entre transição energética e conservação, Gomes destaca alguns acima na cadeia produtiva, como o quanto o Brasil está disposto a aumentar a sua capacidade de produção mineral, impactando biomas e comunidades locais; ou, até que ponto o País deve ficar dependente de importações. Cadeia abaixo, ele cita, por exemplo, como escolher os territórios que serão poupados para conservação e quais impactos ambientais são aceitáveis para a transição acontecer.
Outros dilemas estão relacionados à inclusão da região amazônica na transição. Mais de 200 comunidades integram os Sistemas Isolados (SIs), onde o Sistema Integrado Nacional (SIN) não chega e a energia elétrica é obtida por meio de pequenas usinas termelétricas e de geradores que utilizam combustível fóssil, em geral diesel.
Embora essas emissões sejam desprezíveis se comparadas às necessidades globais, o fato é que comunidades que já estão experimentando energia renovável, comemoram a chegada do novo sistema elétrico não poluente. De acordo com a Climate Policy Initiative, organização focada em políticas ambientais e mudança climática, cerca de 3 milhões de pessoas dos SIs estão fora do Sistema Integrado Nacional (SIN).
Em meio a tantas questões, há, pelo menos, duas certezas: “o processo de escolha precisa envolver a sociedade civil e qualquer projeto de energia, mineração e infraestrutura deve resultar em desenvolvimento local para a região”, conclui Bruno Gomes.
Os dilemas listados pelo sociólogo ajudaram o secretário de Planejamento e Transição Energética do Ministério de Minas e Energia, Thiago Barral, a expor as dificuldades enfrentadas no desenho de políticas de transição energética.
“Estamos construindo políticas que passam por biocombustíveis, energia eólica e solar, biogás, geração distribuída e toda a infraestrutura de energia limpa necessária para que possamos reduzir a dependência de combustíveis fósseis. “Percebemos que esse processo é a ponta de um iceberg. A transição energética traz um baita desafio local”, admite Barral.
Transição justa
Um dos desafios que ele aponta é garantir uma transição justa. Ele lembra que, enquanto em países desenvolvidos a narrativa da necessidade de uma transição justa nasce centrada na preocupação com o destino dos trabalhadores das indústrias fósseis, que perderiam seus empregos e precisariam se requalificar, no Brasil, essa problemática tem mais a ver com inclusão e com o impacto da infraestrutura sobre as comunidades e o território. “O consumo de energia per capita do Brasil é bem inferior ao de países desenvolvidos, por isso, estamos agregando a dimensão do acesso à energia em nossas políticas públicas”, diz o secretário.
Para o gestor público, é importante descarbonizar os SIs da Amazônia, hoje dependentes do óleo diesel, bem como investir na qualidade do suprimento de energia. “Para isso, estamos lançando o programa Energias da Amazônia, que traz direcionadores para a redução de consumo de combustíveis fósseis, com substituição por energia limpa e renovável, e retomamos o programa Luz para Todos, relançado em Parintins (AM) em meados do ano”.
Barral afirma ainda que o governo está traçando uma política nacional de transição energética, composto de dois instrumentos: o Plano Nacional de Transição Energética (Plante), para organizar uma agenda prioritária de ação e investimento; e o Fórum Nacional de Transição Energética (Fonte), que prevê participação social mais ativa na formulação das políticas. “Para alcançar capilaridade regional, é fundamental a parceria com as organizações que estão presentes de uma forma mais distribuída no território”, diz.
O Fonte terá a função de conciliar o aumento necessário da infraestrutura de energia limpa com um processo democrático de participação social. Segundo Barral, o processo de transição energética é uma pauta positiva mas, ao mesmo tempo, extremamente conflituosa, pois envolve disputa econômica, tecnológica, e territorial. “O caminho da transição definitivamente não é uma linha reta”, resume ele.
Enquanto formula políticas para a transição energética, o governo federal segue realizando leilões de áreas para exploração de petróleo e gás, como ocorreu em 12 de dezembro de 2023.
Participação social bem-vinda
A analista de Conservação da Área de Transição Energética e Infraestrutura do WWF Brasil, Alessandra Mathyas, celebra a iniciativa do governo de criar o Fonte. “É uma bandeira importante”, diz ela durante sua fala na plenária virtual. “O setor energético sempre funcionou muito restrito a engenheiros e a um setor jurídico muito específico. Para quem não era da área, sempre pareceu um setor muito difícil de se trabalhar”.
Sobre a questão da conciliação entre transição e conservação, Mathyas também se diz favorável à entrada dos SIs no Sistema Integrado Nacional devido à descarbonização que a integração irá proporcionar. Para ela, a micro geração de energia tem um papel importante na transição ecológica brasileira no contexto amazônico. No entanto, ela defende que o uso de biomassa para gerar energia em áreas florestais seria o recurso mais indicado.
“O Brasil cresceu muito com solar e eólica, mas a biomassa distribuída precisa ser mais bem avaliada. É um recurso abundante e já foi estudado nas universidades brasileiras. É uma questão de escolha e, por isso, os espaços de diálogos, como o Fonte, serão tão importantes nessa fase”, afirma Mathyas.
Outros exemplos que a analista enumera são o uso do etanol de mandioca para abastecer frotas locais e pequenas usinas de energia, e o aproveitamento do caroço de açaí, um resíduo que está gerando problemas na região por não ser rapidamente biodegradável, nem servir para adubar plantações.
Barreiras culturais
Informação de qualidade e capacitação também precisam constar dos pacotes de suprimento de energia renovável, o que evitaria muitos dos problemas vistos hoje. Ela conta que comunidades beneficiadas pelo Luz para Todos com sistemas fotovoltaicos estão preocupadas com os kits residenciais instalados por empresas terceirizadas nos assoalhos das casas.
“São casas ribeirinhas que alagam na época das cheias. As baterias, os inversores e os controladores que compõem os kits [de energia solar] poderão ser engolidos pela água já em janeiro e fevereiro”, afirma Mathyas. “Se as associações locais tivessem sido consultadas pelas distribuidoras sobre o melhor arranjo das instalações, esse problema não existiria. É preciso sensibilidade para entender o conceito das várias Amazônias”, adverte.
A comunidade quilombola Boa Vista, em Oriximiná, no Pará, uma das maiores do País, está em plena transição energética. A instalação dos painéis solares que deverão substituir os geradores à diesel estão em fase final de instalação.
Claudinete Colé, dirigente na Associação das Comunidades de Quilombos de Oriximiná (Arqmo), que representa 37 comunidades quilombolas no município, conta, em sua participação na plenária da Concertação, que todos aguardam ansiosos pelo fim das lamparinas, velas e óleo diesel, apesar da apreensão devido à instalação dos kits nos assoalhos das casas ribeirinhas. Sobre esse equívoco, ela diz que a Arqmo está buscando uma solução junto à Equatorial Energia, empresa responsável pela implementação do sistema.
Colé aproveita também para descrever a “face” da emergência climática. “Aqui já estamos experimentando as consequências da mudança do clima”, afirma, referindo-se à grande seca dos rios provocada pela estiagem severa nos meses de outubro e novembro últimos. “Rios com 20 metros de profundidade simplesmente secaram e toneladas de peixes morreram. Nunca testemunhamos nada igual. É a Amazônia pedindo socorro”.
O evento climático acendeu um alerta entre os integrantes da Arqmo sobre a necessidade de buscar um diálogo com a Mineração Rio Norte (MRN), cujas minas de bauxita estão localizadas próximas a comunidades quilombolas, para tratar da redução de impactos sociais e ambientais negativos. Oriximiná é o maior produtor brasileiro de bauxita. O município responde por cerca de 40% da produção nacional.
O grande impulso ambiental
A oficial de Assuntos Econômicos da Cepal, Camila Gramkow, usou o espaço na plenária para reforçar a importância da transição energética para estabilizar o aquecimento global ao enfatizar: “Se quisermos interromper essa rota de aquecimento, teremos de alcançar a meta de emissão líquida zero. Isso significa mudanças profundas no nosso sistema de produção, consumo e distribuição de energia, e no modelo de desenvolvimento”.
A economista expõe dois cenários em estudo na Cepal. O primeiro deles, mais próximo do momento atual, apresenta certo grau de descarbonização, com investimentos nas áreas de energias renováveis. Mas a estratégia não é implementada de forma coordenada entre os setores produtivos. Nessa hipótese, haveria painéis solares nas casas e empresas, os meios de transporte seriam eletrificados, mas sem uma concertação envolvendo o setor produtivo.
Em termos de América Latina e Caribe, a transição nesse cenário ocorreria essencialmente com base em importações de veículos, baterias, painéis solares. Ou seja, os equipamentos de maior valor agregado viriam de fora, agravando ainda mais a dependência externa dos países da América Latina. Além disso, os investimentos não se reverteriam em geração de emprego e renda dentro dos territórios. “Esse é um cenário similar ao que temos identificado no momento e muito provavelmente não nos levará à descarbonização necessária”, diz a economista.
O segundo cenário sobre o qual a Cepal está debruçada procura mapear os setores estratégicos e as políticas necessárias para que uma transformação profunda no modelo de desenvolvimento aconteça de fato, e venha acompanhada da descarbonização total. Nessa hipótese, a Região Amazônica, por exemplo, conseguiria se capitalizar usufruindo economicamente do fato de ser uma absorvedora de carbono, por meio de reflorestamentos, recuperação de pastagens degradadas etc.
O mesmo aconteceria com Chile, Bolívia e Argentina, países que juntos formam o “triângulo do lítio”, onde estão as maiores reservas do minério no mundo.
“É fundamental considerarmos que lugar a América Latina quer ocupar nessas novas cadeias globais de valor. Seremos apenas exportadores de commodities verdes ou buscaremos agregar valor, desenvolver as cadeias produtivas, reduzir a dependência externa, e manter emprego e renda nos limites geográficos da região?”, questiona Gramkow.
Boa parte dos minerais essenciais para a transição energética está localizada em áreas ecológica e socialmente vulneráveis. Por isso, ela compartilha da opinião dos demais painelistas de que é fundamental que a mineração aconteça com base em diálogos sociais estruturados. E enfatiza também a importância de os investimentos verdes, de baixo carbono, serem complementados por investimentos em educação, capacitação e construção das capacidades tecnológicas e produtivas.
São esses investimentos complementares que traduzirão a agenda de descarbonização, de criação de emprego, de postos de trabalho decentes, permitindo aos países dar um salto de desenvolvimento. Trata-se do processo que na Cepal é chamado de big push ambiental, abordagem formulada nos anos 1950, que busca associar a transição para uma economia verde à redução das desigualdades sociais.
Para Gramkow, deve-se olhar não só para as tecnologias, para as práticas de baixo carbono, de redução de gases de efeito estufa, mas também, e essencialmente, para os setores complementares que converterão esses investimentos em oportunidades para os países. “Poderíamos traduzir o big push como o grande impulso para um mundo sustentável”, vislumbra ela.