Sibé Feliciano Lana ou Kenhiporã - o filho dos desenhos dos sonhos (1937-2020)

Dos desenhos a lápis, guaches e aquarelas do artista plástico Desana Os Desana, que se autodenominam Umuko Masá (“gente do universo”), são um dos dezesseis povos da família linguística Tukano Oriental, moradores da região do Rio Uaupés, afluente do Alto Rio Negro. O Rio Tiquié, em cujas margens está localizada a aldeia onde nasceu Sibé, é um afluente do Uaupés. Feliciano Pimentel Lana (nome de batismo), emergem as memórias, imagens e narrativas míticas de Sibé, seu “nome-de-assopro Nome sagrado atribuído ao recém-nascido.”, que significa “Filho do Sol” na tradução ao português. 

Sibé assumiu desde cedo a missão de interpretar e manter viva, por meio da arte, as histórias que ouvia dos anciões da aldeia de São João Batista, localizada às margens do Rio Tiquié, região do Alto Rio Negro (AM), próxima à fronteira com a Colômbia.

Dono de um estilo inconfundível, em que cada composição corresponde a uma narrativa, sua obra deita raízes no período em que colaborou com as pesquisas do padre lituano Casimiro Béksta, professor do colégio salesiano localizado na região, que se interessava em saber mais sobre os mitos e o xamanismo indígena.

Seus desenhos e pinturas estão carregados de simbologias que narram a história dos grupos indígenas que habitam seu território de origem. Mostram peixes, pássaros, onças e cobras; canoas indígenas, rios, praias e paisagens do Alto Rio Negro. Expressam sua visão do mundo e dos seres que, conforme o relato dos mais velhos, encantam aquelas paragens.

A introdução de Feliciano às artes veio ainda na infância

Filho de pai Desana e mãe Tukano, Sibé pertenceu ao sib (grupo de descendentes do mesmo ancestral) Kenhiporã, termo que em português significa algo como “Filhos dos Desenhos dos Sonhos”.

Começou a se aventurar na arte visual depois de deixar sua aldeia natal, aos 11 anos, para estudar no internato Salesiano de Pari-Cachoeira. Lá, o menino teve aulas de desenho e recebeu noções de proporção, perspectiva, construção geométrica, composição, luz e sombra. O internato foi também onde ganhou o nome de Feliciano Pimentel Lana. Após o 6º ano, Sibé mudou-se para a Colômbia, onde permaneceu por cinco anos realizando trabalhos manuais diversos, como mecânico, agricultor e seringueiro, mas longe do desenho.

Ao voltar, o artista casou-se com Joaquina Machado, tukano de Pari-Cachoeira. Foi nessa época que Sibé passou a cooperar com as pesquisas do padre Casemiro Béksta. Este distribuiu papel, lápis, gravador e materiais de desenho para alguns de seus antigos alunos e pediu-lhes que coletassem informações junto aos parentes, especialmente os mais velhos, uma vez que seu legado cultural era mantido apenas pelas tradições orais.

Ao entrevistar seu sogro para o projeto, Feliciano se viu preocupado com a dificuldade de expressar algumas das ideias que ouviu. Assim, decidiu desenhar os episódios narrados pelo ancião.

Na vida e na obra de Lana, desenho e narrativa são inseparáveis

A partir de então, por toda a vida Feliciano dedicou-se a registrar e ilustrar essas narrativas, tornando-se proprietário de um vasto e minucioso conhecimento da história, histórias e paisagens do noroeste amazônico, exprimindo-se sempre por meio de desenhos e pinturas. Como nesta ilustração do mito do Cobra Honorato:

Cobra Honorato (ou Norato) é uma serpente encantada que vivia com sua irmã gêmea, Maria Caninana, no fundo do rio. Honorato teria feito amizade com um soldado que o ajudou a remover o encanto, tornando-o um homem para o resto de sua vida. No desenho acima, Feliciano mostra Honorato antes de se transformar em homem, mas dizendo à sua mãe que quer conhecer e ficar com seu pai.

A origem do universo pelo olhar desana ganha o mundo

Dentre seus trabalhos mais notáveis, destacam-se as ilustrações do livro “Antes o mundo não existia: mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã” de autoria de Luiz Lana e Firmiano Lana (Tolaman Kenhiri e Umúsin Panlon Kumu), respectivamente seu primo e tio. Com introdução e notas da antropóloga Berta Ribeiro, o livro publicado pela primeira vez em 1980 é considerado um clássico da antropologia brasileira, bem como da literatura indígena, contendo o mito desana da criação do mundo e outras histórias.

A arte de Feliciano ilustra as conexões entre o mundo dos homens e o dos demais seres

O desenho abaixo conta parte da história de Diadoê, que explica a origem do matapi (artefato de pesca), pirarucus e traíras. A obra mostra Muhipu, Gente-Estrela (há quem diga que ele foi um poderoso deus) que morava no rio Uaupés, acima da comunidade Jutica. Todos os dias ele levava seu filho para pescar e pegava muitos peixes. Os outros da aldeia iam pescar, mas nada conseguiam. 

O trabalho e o legado de Sibé não se limitam aos seus desenhos

O escritor Márcio Souza inspirou-se nas lendas desana para escrever, em parceria com Aldísio Filgueiras, o libreto da ópera “Dessana, Dessana”. E também para produzir e dirigir o documentário “O começo antes do começo”, que traz ilustrações de Feliciano e narração do padre Casimiro sobre o mito da criação do mundo, na visão da região Alto Rio Negro. 

Feliciano era também narrador e escritor. Foi autor do texto e ilustrações de “A origem da Noite & Como as mulheres roubaram as flautas sagradas”, publicado pela Editora da Universidade Federal do Amazonas em 2009, que consolida sua forma de contar histórias a partir do desenho.

Feliciano levou a cultura indígena para além do Alto Rio Negro

Sibé foi um dos mais importantes artistas indígenas contemporâneos do país. Ao longo da carreira, participou de mostras e exposições em diversos museus e galerias pelo Brasil e o mundo, tendo passado por países como Alemanha, Espanha, Itália e Reino Unido. 

Não é acaso que esse gigante da criação indígena, reconhecido pelo valor artístico e etnográfico de sua obra, tenha em Manaus, no Museu da Amazônia (Musa), uma exposição permanente com 52 aquarelas e desenhos que registram mitos e histórias do povo Desana.

Sua arte é fundamental para o registro e a preservação da cultura indígena do Alto Rio Negro. E, a partir de fevereiro, ela passa a inspirar e iluminar também a identidade visual dos canais digitais da Concertação.

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