A maioria dos municípios da Amazônia Legal não possui patrimônio fundiário

Em entrevista à Concertação, a Dra. Luly Fischer, professora de Direito e membro do Programa de Pós-Graduação em Direito e Desenvolvimento na Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA), explica por que muitas cidades da Amazônia Legal não são proprietárias sequer de sua própria sede.

Ela demonstra que possuir patrimônio fundiário próprio é vital para os municípios brasileiros e analisa as consequências da inexistência desse patrimônio para inúmeros aspectos da vida das (e nas) cidades da Amazônia Legal. A professora aborda também os impactos dessa realidade para a viabilidade de políticas públicas e possíveis soluções. Confira:

1) Por que a maioria dos municípios da Amazônia Legal não tem patrimônio fundiário próprio?

Na Primeira República (1889-1930), havia outras prioridades de definição de limites pelos estados federados, bem como a necessidade de identificação das áreas privadas para que pudesse ser feita a arrecadação de áreas não ocupadas por particulares (terrenos devolutos) para as intendências municipais.

A partir da década de 1930, teve início o processo de federalização de terras na Região Norte. Esse processo atingiu seu mais alto nível nas décadas de 1960-70 do século passado, retirando dos estados a capacidade de destinar terras para os municípios emancipados. 

Hoje, a maioria dos municípios existentes na região é da segunda metade do século XX, e os estados federados detêm pouco ou quase nada da propriedade para doar aos municípios criados.

Por sua vez, o mercado de terras também não é estável para a realização de desapropriações ou a aprovação de loteamentos formais, o que gera dependência das destinações por parte da União.

Após 2009, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) flexibilizou as regras para aquisição desse patrimônio pelos municípios. A maior parte das glebas está apta à destinação imediata, mas o procedimento de caracterização da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) na região ainda é baixo, o que impede a celeridade do processo.

Para que os municípios consigam gerenciar esse patrimônio adequadamente, é necessária uma política direcionada à superação desse gargalo, bem como um processo de acompanhamento.

 

2) Existem dados oficiais sobre a situação patrimonial dos municípios da Amazônia Legal? 

Não existem dados consolidados sobre a situação patrimonial dos quase 800 municípios que integram a Amazônia Legal. Para se chegar a um dado aproximado, o único caminho é analisar a realidade de cada estado e o processo de emancipação municipal.

Para municípios existentes até a década de 1930, com exceção do estado do Acre, houve a tentativa de destinação de terras devolutas ou o reconhecimento de doações realizadas durante o período colonial/monárquico, em processo semelhante ao que ocorreu com a destinação de patrimônios municipais em outras regiões do Brasil.

No entanto, o processo de destinação não ocorreu de forma sistemática em áreas de antigos territórios (Amapá e Roraima), tampouco em municípios criados e emancipados a partir da década de 1960, em áreas de influência de rodovias construídas a partir de então.

Nesses casos, houve uma destinação significativa de áreas arrecadadas e matriculadas em nome do Incra que perderam a destinação produtiva em decorrência da urbanização, durante o Programa Terra Legal (Lei 11.952/2009). Os quantitativos estão discriminados nesta planilha, que usamos como base para elaborar a figura abaixo:

Ressalto que a destinação pode continuar ocorrendo pelo Incra, mas não tenho conhecimento de que tenha havido destinações concluídas durante a última gestão (2019-2022). Essas destinações necessitam ser demandadas como doações pelos municípios, e nem todos o fizeram por falta de conhecimento ou disponibilidade de técnicos para instruir os processos.

Já as áreas nas beiras de rios e ilhas são geridas pela SPU. Para a maioria dos estados, ainda não há caracterização do patrimônio federal, o que dificulta uma destinação como a que ocorreu durante o Programa Terra Legal.

Outra dificuldade é que compete ao município custear todo o processo de levantamento da SPU, não havendo a certeza de que a transferência ocorrerá durante a mesma gestão. Além disso, áreas de espelho d’água e várzeas possuem limitações legais à destinação, assim como as localizadas em faixas de fronteira, o que torna a operacionalização do processo praticamente inviável em muitas situações.

Em 2017, o Congresso Nacional deu início ao processo de estadualização do patrimônio dos antigos territórios federais, mas o procedimento não está finalizado. Nesses casos, em que processo de destinação ocorreu na Primeira República ou ainda está pendente, a regularização urbana ocorrerá pelo estado e não mais pela União.  

3) Quais são as principais consequências dessa situação?

As consequências negativas são multiescalares e não se limitam à realidade das cidades. Entre elas, destacam-se a incapacidade de obtenção de recursos do governo federal para a implantação de equipamentos públicos e a baixa efetividade de planos de controle do uso e ocupação de solo, cuja regulação não alcança bens públicos.

Outros problemas decorrentes da ausência de patrimônio fundiário envolvem a baixa arrecadação tributária patrimonial, o avanço do mercado de terras informal e a dificuldade em se promover melhoria habitacional.

Vale destacar ainda a facilidade de ocultação de patrimônio pessoal, o baixo estímulo à formalização de atividades econômicas e ao cumprimento de normas trabalhistas e ambientais e, finalmente, a utilização da violência para a resolução de conflitos.

4) Quais seriam os caminhos para corrigir essa situação?

Para solucionar a situação, diversas ações devem ser realizadas de forma complementar. Em primeiro lugar, é preciso estimular a regularização fundiária urbana de áreas consolidadas por meio de anuência pela União, sem que haja necessidade de doações ou celebração de termos de cooperação. As áreas seriam repassadas diretamente aos ocupantes privados, seja na modalidade individual ou coletiva.

Ainda, para manter a destinação por meio de doação de áreas em consolidação pela União de acordo com o planejamento urbano aprovado localmente, é importante trabalhar pela superação da aplicação do limite de 2500 hectares para entes municipais, previsto na Constituição.

Em relação à legislação nacional, é necessário adaptá-la para simplificar o planejamento urbano para pequenos municípios na região. Devem ser consideradas dinâmicas rurais, socioambientais e étnicas, assim como dinâmicas de moradia e produção sazonais para fins do reconhecimento do direito à moradia da população.

Não podemos esquecer da importância da criação de políticas públicas para a regularização fundiária de espelhos d’água e várzeas que não implique a descaracterização de processos socioambientais existentes.

Finalmente, para todas essas ações, é fundamental que sejam criados programas de assistência técnica e acompanhamento multidisciplinar para orientar o processo de destinação dessas áreas aos municípios pela União e estados federados;

Para maior aprofundamento no tema e conhecimento de um estudo de caso (Parauapebas, PA), acesse a tese de doutorado da Prof. Luly Fischer, em que também é apresentado o modelo de ordenamento territorial da Guiana Francesa: https://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/7502