Tornar visíveis os invisíveis: a busca incessante de Éder Oliveira

Olhar endurecido, tristonho ou constrangido, físico mirrado e identidade não revelada. São assim os sujeitos vistos pela sociedade como marginais, que protagonizam as pinturas de Éder Oliveira. Usando como matéria prima as páginas policiais dos jornais, o pintor dá identidade aos personagens anônimos que são retratados como criminosos, mesmo que sua culpa não tenha sido estabelecida.

Tornar visíveis os invisíveis: a busca incessante de Éder Oliveira

O pintor paraense é o artista que, a partir de dezembro, passa a inspirar a identidade visual dos canais digitais da Concertação 

Olhar endurecido, tristonho ou constrangido, físico mirrado e identidade não revelada. São assim os sujeitos vistos pela sociedade como marginais, que protagonizam as pinturas de Éder Oliveira. Usando como matéria prima as páginas policiais dos jornais, o pintor dá identidade aos personagens anônimos que são retratados como criminosos, mesmo que sua culpa não tenha sido estabelecida.

A fotografia sempre esteve presente em seu trabalho, mas não é ele quem fotografa. Em seu processo criativo, Éder se apropria de imagens publicadas nas páginas policiais, substituindo a ambientação por um contexto estético e artístico que vai muito além da ideia de criminalidade.

O artista faz uso de técnicas diversas, que vão do óleo sobre tela aos grandes formatos das intervenções urbanas aos quais dedicou boa parte de sua carreira. E passam também por aquarelas, site-specifics Site-specific é um termo que se refere a obras de arte criadas para um local específico, de forma que estejam intimamente ligadas ao ambiente em que se encontram e objetos que sempre tomam a fotografia como base. Em entrevista à Concertação, ele descreveu seu processo artístico:

“Trabalhei durante uns dez anos com a ideia de apropriação do fotojornalismo das páginas policiais. (…) Eu tirava a imagem do contexto, recortava somente o que me interessava e jogava o resultado como obra de arte, o que automaticamente subvertia a imagem marginalizada, tornava-a uma coisa bonita. A partir daí, o público podia perceber que olhava para pessoas bonitas, jovens e fortes”.

Da transição da cidade pequena para a capital, nasce o desejo de pintar pessoas comuns e a consciência de ser uma delas

Éder Oliveira nasceu no vilarejo de Velha Timboteua, município de Nova Timboteua, pequena cidade do interior paraense, a cerca de 140 km de Belém. Deixou-a em 2004, aos 17 anos, para cursar a faculdade de Educação Artística na capital. Ele esperava vivenciar uma cidade diferente daquela que realmente encontrou e percebeu que os costumes em Timboteua eram muito semelhantes aos da periferia da cidade: “a gente falava, se vestia e cortava o cabelo como alguém da periferia de Belém”.

Mas na faculdade, observou que seus colegas e professores não ouviam as mesmas músicas, não falavam ou se vestiam como ele, nem tinham a mesma relação com a floresta e o rio. Do estranhamento com essa versão da cidade nasceu o desejo de pintar as pessoas “comuns”, em contraposição à “elite” do curso superior. Somente mais tarde entendeu que esse desejo era, na verdade, o de pintar pessoas como ele mesmo.

A violência da exclusão dos mais pobres explode nos tons vermelhos e invade todas as paisagens

Ainda nessa época, a descoberta do daltonismo o levou a explorar os tons monocromáticos, em particular o vermelho, cor que também ressalta a violência da exclusão dos jovens mais vulneráveis. Sem recursos para contratar modelos vivos como desejava, passou a pesquisar as imagens impressas nas revistas e jornais. E foi percebendo que essas eram pessoas racializadas, que tinham histórias de vida atravessadas por processos de êxodo, de apropriação de florestas e só apareciam nos jornais em páginas dedicadas a crimes.

Desde então, a trajetória artística de Éder Oliveira está voltada para a ressignificação da identidade dessas pessoas de traços negros e indígenas. Suas obras denunciam os mecanismos perversos de exclusão social que marcam a vida de jovens pobres e banalizam suas identidades. Também tornam evidentes as relações entre imagem, cor da pele e marginalização, como na tela a seguir, da série Páginas Vermelhas (Foto: Felipe Berndt):

Sem título – Série Páginas Vermelhas (2015) – Óleo sobre tela

Ressignificar é devolver as fotos aos jornais, agora nas editorias mais nobres

Oliveira põe em evidência a produção e a circulação de fotografias de pessoas consideradas criminosas a priori, ao mesmo tempo que busca novos contextos e cenários alternativos a essas imagens. Retiradas dos cadernos policiais, as fotografias se transformam em pinturas, murais e intervenções urbanas que criam uma outra possibilidade, mostrando beleza onde a maioria das pessoas via apenas algo ruim. Se voltarem aos jornais, os indivíduos retratados o farão como parte integrante de obras de arte, divulgadas em editorias de cultura.

Outro aspecto de sua obra que merece destaque está na busca pela ampliação da escala. Trata-se de um esforço que responde à necessidade de provocar um impacto visual mais significativo e que o levou a se interessar por intervenções urbanas. De início, elas ocupavam muros menores. À medida que adquiriu mais autonomia e recursos, o artista passou a produzir obras de maior porte, contratando andaimes e assistentes para estruturar essas intervenções em espaços mais amplos.

Éder relata que nos últimos 10 anos vem reformulando essa abordagem e, gradualmente, substituindo os retratos individuais por cenas que ofereçam um contexto para seus personagens. São novas abordagens e formas de expressão artística que procuram atender a questões éticas relacionadas à representação de rostos específicos, especialmente no contexto de imagens apropriadas de jornais.

Essa transformação também é resultado da reflexão sobre a possibilidade de pintar outras Amazônias além da sua própria, que é caracteristicamente urbana. Desde a pandemia de Covid-19, o artista se aprofundou na literatura de viagens produzida por exploradores do período colonial, que sempre levavam desenhistas em suas excursões e trouxeram o olhar do estrangeiro sobre as Amazônias. Esse mergulho fez com que ele também se sentisse mais à vontade em pintar outras Amazônias.

Embora essas obras tragam a mesma denúncia da marginalização das pessoas mais vulneráveis, elas agora enfatizam cenas e narrativas em vez de rostos individuais. A alteração amplia o foco de seu trabalho, de maneira que a violência e exclusão social são exibidas por meio de paisagens urbanas e ribeirinhas. Para ele, trata-se de uma evolução de seu conceito original, que mantém a conexão com suas reflexões sobre a Amazônia, a periferia urbana e as complexidades sociais da região.

Sem título – Série Portos (2023) – Óleo sobre tela

São muitas as Amazônias

O artista compartilha com a Concertação a noção de que existem diversas Amazônias. Dando suporte à ideia, ele relembra a viagem que fez de barco de Belém a Iquitos, no Peru, em que percebeu que as feições dos habitantes em cada trecho da travessia eram muito diferentes. Ao ponto de ele mesmo perder a autoimagem de pertencer ao grupo das pessoas “comuns” à medida que avançava território adentro.

“Foi quando eu percebi, realmente, as dimensões da Amazônia. A partir de Manaus, por exemplo, existe uma Amazônia peruana na Amazônia brasileira, em que até o semblante das pessoas é diferente. Desse ponto em diante, já não conseguia me misturar às pessoas, me senti um estrangeiro”. 

Éder comentou também a existência de grandes diferenças entre a Amazônia rural e a urbana, dos diversos climas que predominam nas capitais dos estados da região, as cores diferentes da terra vislumbrada nas ribanceiras dos rios e muitos outros elementos que ele passou a mostrar em seus trabalhos mais recentes. 

Sem título – Série Margens (2022) – Óleo sobre tela

A predominância da cor vermelha é uma forma de manter a essência crítica de seu trabalho

Apesar da mudança de foco e do registro das diferenças das muitas Amazônias, o uso intenso do vermelho permanece e unifica sua obra. A cor lhe permite manter a discussão sobre a marginalização dos mais vulneráveis na região. 

“Quase todas as vezes que eu pinto esse rio, por exemplo, ele é vermelho, porque existe sangue e violência na Amazônia e meu trabalho envolve a violência. Eu não quero pintar essa paisagem porque é bonita. Eu estou falando de um tema difícil e complicado, mas que precisa ser visto”.

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