Obras de Rafael Prado têm as cores, as memórias e a resistência das Amazônias

Em julho, o trabalho do artista rondoniense passa a inspirar a identidade visual dos nossos canais digitais

Rafael Prado é dono de uma obra de estilo autêntico e marcante, que nos convida à escuta e à imersão na Floresta Amazônica e nas histórias de sua população. Suas pinturas a óleo sobre tela nos oferecem a oportunidade de ouvir e entender pessoas, territórios e modos de vida silenciados pela violência, que seguem invisíveis aos olhos de grande parte dos brasileiros.

Caracterizado por pinceladas grossas, com predominância de tons terrosos e verdes, os trabalhos de Rafael trazem também o ambiente no qual essas pessoas vivem ou viveram: a atmosfera amazônica densa, úmida e quente, onde o calor aperta e as pessoas transpiram. 

Em entrevista à Concertação, o artista plástico natural de Porto Velho (RO) falou sobre sua abordagem da arte como uma maneira de amplificar vivências distintas e aproximar mundos.

Por meio da arte, eterniza-se o que se tentou silenciar

As escolhas artísticas de Rafael são inseparáveis de sua trajetória de vida. Filho de mãe rondoniense com ascendência indígena e de pai nordestino, migrante que deixou o Ceará na década de 1980 para trabalhar no garimpo amazônico, ele foi estimulado pela mãe desde cedo a mergulhar no universo das artes, tendo convivido com artistas e experimentado múltiplas linguagens. 

Nesse universo familiar característico das Amazônias, cresceu ouvindo diferentes relatos sobre a ocupação do território e os ciclos de expansão econômica que marcaram a história de Rondônia. Em sua visão, intervenções como o garimpo e a construção das grandes hidrelétricas não beneficiaram as pessoas do lugar.

Para ele, apesar das promessas de riqueza, esses ciclos marcaram as comunidades locais pela violência. Ao mesmo tempo, produziram seres humanos extraordinários, que se dedicaram à defesa da floresta, dos seus habitantes e modos de vida, e que foram silenciados por grupos dominantes. São as vozes, os sonhos e as lutas desses personagens que Rafael quer pintar.

Segundo o artista, “a pintura é tradicionalmente algo que resiste ao tempo. Ela dura 500 anos. Você coloca em um museu e preserva, fala para outras gerações. Conta como era, como se pensava naquele lugar e naquele tempo”. Ao se perguntar quais histórias desejaria contar para si mesmo e para as próximas gerações, e de qual maneira queria olhar para o passado, o artista decidiu falar “sobre essas pessoas que foram silenciadas, literalmente apagadas, aniquiladas”. 

Durante nossa conversa, Rafael pontuou diversas vezes que o apagamento das memórias faz parte do ambiente amazônida e pode ser observado em múltiplas dimensões. Ele conta que sua família, por exemplo, tem raízes indígenas, “mas como acontece com muita gente na Amazônia, essa história foi sendo silenciada dentro de casa. Isso também é apagamento”. 

“Quando uma história é silenciada, há também um apagamento de existência. Minha resistência é seguir contando, para que não se esqueça” – Rafael Prado

Para Rafael, a arte é forma de encantamento e denúncia

Embora de início tenha se interessado por diferentes linguagens artísticas, foi na pintura que Rafael encontrou o seu caminho. É por meio dela que ele melhor expressa as vozes da Amazônia como as imagina. 

Sua arte transita entre a realidade, o sonho e os mitos das Amazônias e tem como elementos centrais o realismo mágico, a memória e o engajamento social. Ela conta histórias a partir das óticas indígena, feminina e negra, que também foram invisibilizadas. “Pintar essas ausências que gritam é a minha forma de dar voz a tudo que ainda não foi dito sobre a Amazônia”, afirma. 

O universo simbólico e cultural de Rafael combina essas ausências com personagens híbridos de humanos, natureza e seres encantados. “Na Amazônia, seres humanos, animais, árvores, rios e pedras fazem parte de um mesmo mundo encantado. Chamo isso de encantarias, e é com essa linguagem que pinto”, diz.

A maneira como o artista conta essas histórias se confunde com formas narrativas muito próprias da região, onde são frequentes lendas como a do homem que se transforma em boto, da mulher que vira onça ou da origem da mandioca.

Na série “Os povos amazônicos não morrem, viram semente” a síntese entre floresta e ser humano

Em uma de suas séries mais emblemáticas, “Os povos amazônicos não morrem, viram semente”, Rafael combina a natureza com o ser humano ao contar as histórias de líderes comunitários assassinados, retratando-os como seres híbridos do humano e do florestal. Ao apresentar verdadeiras fusões desses universos, as obras transformam trajetórias de luta em símbolos de resistência e permanência.

A série traz pessoas que foram fundamentais em vida, pelo que fizeram, pelas comunidades que protegeram. Para o artista, são essas vidas, muito mais do que as circunstâncias das suas mortes, que precisam ser lembradas.

É o caso da história de Zé Cláudio, que Rafael pintou fundido a uma árvore. Sua esposa, Maria, aparece como uma pequena cotia, animal que enterra as sementes e, assim, garante a reprodução das castanheiras. O casal de castanheiros combatia o desmatamento e foi assassinado no Pará em 2011:

Zé Cláudio e Maria

Também é paradigmático dessa série o retrato que traz o olhar entristecido do acreano Chico Mendes, defensor da floresta e das comunidades extrativistas, assassinado em 1988:

Chico Mendes

Já Adelino Ramos, líder camponês de Rondônia ligado à Pastoral da Terra e assassinado em 2011, é retratado como árvore, com seus braços abertos:

Adelino Ramos

Síntese dessa coleção de pinturas, a tela a seguir mostra defensores-símbolo da floresta em comunhão com ela e unidos em sua defesa:

Da esquerda para a direita: Paulo Paulino Guajajara (morto em 2019), Maria e Zé Claudio, Chico Mendes, Nicinha, do Movimento dos Atingidos por Barragens (assassinada em 2016), e Cacique Maroaga, líder Waimiri-Atroari (morto em 1974).

Entre o garimpo e o Eldorado: série apresenta realidade brutal dos ciclos extrativistas das Amazônias

A visão crítica de Rafael a respeito da exploração da Amazônia também aparece de forma contundente em outra de suas séries, inspirada na lenda do Eldorado e no garimpo, intitulada “Eldorado: Moldura Criativa do Imaginário Amazônico”. Partindo da história mítica da cidade de ouro, o artista constrói um paralelo entre as promessas de riqueza fácil que atravessaram os séculos e a realidade brutal dos ciclos extrativistas na região.

A borracha, o ouro, a madeira, as hidrelétricas: todos esses ciclos, segundo Rafael, repetem um mesmo roteiro de falsas promessas de progresso. A prosperidade é sempre anunciada, mas nunca chega para quem vive ali. Em vez disso, o que permanece são as marcas da destruição ambiental e social.

Esse conjunto de pinturas, que retrata trabalhadores do garimpo, deu origem à exposição “Órfãos do Eldorado”, realizada em São Paulo, em 2022. Sobre a série, o artista escreveu em seu Instagram:

“No meio da floresta amazônica, o calor e a umidade são igualmente intensos. Distantes de qualquer vilarejo, homens cavam a terra em busca de ouro. Nesse lugar não se escuta o som dos animais, não se percebe o som da floresta, apenas o barulho ensurdecedor do motor da draga ligado 24 horas por dia”.

A obra a seguir fez parte da mostra e exibe um garimpeiro determinado em encontrar o tão sonhado ouro. No entanto, tudo o que essa determinação produz é o deserto à sua volta:

O Eldorado é aqui

A arte de Rafael atua como porta de entrada para as Amazônias

A obra de Rafael Prado é um exemplo da arte como porta de acesso e de (re)conhecimento da região amazônica. Ao pintar as vidas e os sacrifícios de pessoas reais, ele revela muitas realidades e as conecta com quem desconhece suas aspirações e lutas. Rafael convoca a potência da arte para que o apagamento não prospere e esses heróis do cotidiano amazônico não sejam esquecidos.

Assim como nós, da Concertação, Rafael acredita na arte e na cultura como caminhos para o (re)conhecimento e valorização do território. Elas são aliadas essenciais para enxergar a complexidade das múltiplas Amazônias, não como algo distante, mas como território que pulsa e nos convida a (re)conhecê-lo por meio das expressões e histórias de quem o habita.

“Quero que quem não conhece a Amazônia sinta, por meio da minha pintura, que esse território é vivo, e que suas histórias importam”.

Indagado sobre os seus sonhos para o futuro, o artista responde com uma simplicidade que, ao mesmo tempo, expõe uma importante ambição. “Sonho com mais centros culturais em Rondônia, lugares onde as pessoas possam se reconhecer, criar e valorizar suas histórias”, explica.

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