Laíza Ferreira

Laíza Ferreira entrelaça memória, ficções, territórios e temporalidades e cria novas possibilidades de re-existência. Por meio de colagens, artista que passa a inspirar a identidade visual dos canais digitais da Concertação instiga o imaginário para se reconectar com os que a antecedem e preencher as lacunas deixadas pelo apagamento cultural amazônico

A busca pelo preenchimento das lacunas da memória move a arte da paraense Laíza Ferreira desde a infância. Antes mesmo de se entender como artista, ela foi seduzida pelo universo das imagens e passou a encarar a criação artística como uma estratégia de sobrevivência, “uma rota de fuga, um meio de transformar a subjetividade, meus imaginários de mim mesma e de outras pessoas”.

Memória ancestral, fotocolagem, 2018

Diante do apagamento cultural e histórico de sua comunidade, Laíza só teve acesso a informações sobre sua origem quilombola por meio da oralidade de sua avó materna, Cassiana, com quem cultivava uma ligação especial. Ela lhe contava histórias de seu passado, dos lugares onde viveu e da vontade de retornar à comunidade quilombola onde cresceu, embora não soubesse especificar onde ficava. Detalhes sobre a Vila São Manoel, no Quilombo Jambuaçu, em Moju, no Pará, só foram conhecidos por Laíza após a morte da avó, durante a realização de seu trabalho de conclusão de curso (TCC) na universidade.

“A minha avó sempre falou sobre o território, mas ela não conhecia, não sabia onde era. Então quando eu fiz o meu TCC que eu fui descobrindo os lugares, porque ela não se lembrava de muitos lugares, e foi a partir das histórias que ela me contava que fui investigando”

A descoberta tardia a fez perceber que os vácuos de sua história pessoal que tanto buscava preencher eram ainda mais profundos. Pesquisando sobre o Quilombo Jambuaçu, buscando conhecer o passado de Dona Cassiana em um processo que descreve como imensamente doloroso, ela se deu conta do que já intuía: as dimensões do apagamento cultural dos povos originários da Amazônia são imensas. Laíza conta que até hoje não conseguiu descobrir se ainda possui familiares no quilombo, embora imagine que sim.

Cassiana, memória ancestral

“Nossas histórias foram apagadas. Não conhecemos lugares, pessoas, histórias; não temos acesso a arquivos históricos. A historiografia oficial, colonial, apagou tudo”

Mesmo antes do aprofundamento dessa consciência, a arte de Laíza já buscava substituir as brechas da memória e gerar questionamentos, reflexões e poéticas. Sua criação partia das histórias da avó, de sua imaginação, de experiências do cotidiano e de questões políticas que a incomodam, por meio de colagens analógicas ou digitais.

“Acesso essas memórias como um campo de força onde crio outras possibilidades de existência. É uma forma de tecer caminhos alternativos e de compreender as próprias narrativas”

Nascida e criada em Ananindeua (PA), a artista entrou em contato com o universo das colagens ainda muito jovem, quando passou a montar fanzines com amigos, atividade que logo se tornaria seu primeiro trabalho profissional. Além de encantá-la, a técnica tinha a vantagem de ser acessível financeira e materialmente, pois já dispunha de muito material de pesquisa, livros e revistas antigas, folhas amareladas, elementos que a atraíam muito. E lhe permitiu avançar para misturas diferentes e novos caminhos.

Intersecção, colagem digital existência, 2020

“Estimo o imaginário para me reconectar com os que me antecederam através do deslocamento de imagens e sobreposição de camadas”

A consciência sobre as lacunas da própria história e da invisibilidade do território amazônico já se expressava em seu trabalho por meio do imaginário que, em suas palavras, é “esse lugar de reconstrução de narrativas no qual a memória ancestral é um processo de reinvenção subjetiva”. 

“Minhas obras se baseiam em investigações que se iniciam em memórias, ficções, territórios e temporalidades distintas, a partir de imagens que evocam a imaginação política”

Com base no que absorve dessa memória ancestral, de referências literárias e experiências do cotidiano, Laíza busca interseccionar e criar uma concepção que seja nova para ela, uma tecnologia íntima. “Uma tecnologia ancestral”.

Quaseilhas, colagem analógica, 2019

Dessa forma, suas obras propõem um rompimento com a temporalidade ocidental, linear, cartesiana e violenta com as realidades e subjetividades amazônidas, que mata a sensibilidade humana. Ela acredita que essa ruptura pode nos mostrar outros caminhos de criação, reflexão e discussão sobre a Amazônia, que permitam aos amazônidas pensar novas possibilidades de sonho, de ter suas subjetividades e identidades afirmadas, reconhecidas e respeitadas.

“O território e a floresta são parte do meu próprio corpo. Por que destruir algo que é parte do seu corpo? Isso também é algo que os povos originários nos trazem, ensinamentos de respeito e de reverência para com a natureza”
CO2

Esse esforço criativo já rendeu à artista o Prêmio Margem Fotografia Potiguar em 2020, pela série “Memória Ancestral”, e a indicação ao Prêmio PIPA em 2021, além de exposições no Brasil, Colômbia e Espanha.

Dona Cassiana infelizmente partiu sem realizar o sonho de retornar à comunidade quilombola de São Manoel, mas a neta Laíza pretende honrá-lo em seu lugar.

A noção mais precisa da extensão de seu próprio apagamento produziu um choque, uma “rasura” em sua arte. Ao perceber que havia sido privada de uma parte de sua vida, passou a questionar: como prosseguir? O que construir agora? Hoje, já sentindo-se melhor, dá-se conta de que um processo fértil pode surgir a partir daí.

Em outra frente, Laíza milita pela arte-educação, atividade que para ela precisa estar inserida nos processos artísticos, uma vez que a nossa relação com as imagens é muito problemática. 

“A todo tempo somos bombardeados por imagens violentas, que ferem o nosso cotidiano e nossa saúde mental. Por isso, os artistas, enquanto pessoas ativas, pensantes, têm um importante trabalho: trazer na educação uma nova relação com as imagens, que possa estar dentro do contexto social e cultural de diversos grupos como um caminho para se construir algo político, coletivo, de autogestão e que não fira os nossos imaginários”

Para avançar nesse trabalho educativo, a artista, que é graduada em Artes Visuais pela UFRN, agora cursa pós-graduação em Ensino de Artes Visuais e desenvolve atividades nessa área em paralelo à criação artística.

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