As técnicas que ela utiliza são tão diversas quanto sua inspiração, passando por fotografia, lambe-lambe, grafite e colagens. O autorretrato está presente de maneira muito forte em sua obra, como um estudo da imagem do seu corpo negro junto aos espaços da cidade.
São cenas do cotidiano amazônico que trazem fachadas, frutas, cores, cheiros, objetos e memórias de infância, nas quais o caos acompanha seu pensamento frenético e incorpora diversas pautas e linguagens.
Seja por intervenções urbanas, peças de artesanato ou exposições, a artista provoca uma sobreposição de questionamentos que levam o espectador a confrontar sua própria concepção de mundo, da Amazônia, de cidade e do outro.
Ao ouvir repetidamente que “sonhava demais” e que jamais conseguiria realizar seus sonhos, Dacordobarro entendeu que era necessário se reconhecer como “um ser muito grande para alcançar lugares maiores do que eu”.
Nesta obra, cuja exibição a artista autoriza pela primeira vez, ela aparece maior que a cidade, confrontando seus vizinhos, o racismo, o machismo e os limites que lhe foram impostos. Trata-se da rua onde ela vivia, em Manaus, e revela sua tomada de consciência de que é possível olhar o mundo para além do que as pessoas lhe diziam ser permitido. “Sonhar mais, alcançar mais Existe um mundo além do meu bairro ou das fronteiras de Manaus que eu também posso almejar”. No alto, à direita, a mão de sua mãe lhe entrega uma figa, símbolo que na Umbanda tem poder de proteção quando é repassado.
Dacordobarro foi criada por mãe adotiva e “solo”, que lhe trouxe as primeiras referências, tanto do universo feminino como dos universos do trabalho, dos afetos e das expressões artísticas. Sua mãe era também artesã, embora não se enxergasse dessa forma. Em casa, ela costumava criar muitos dos objetos que a família não tinha condições de adquirir, “tornando muito natural o ato de confeccionar coisas com as próprias mãos”.
Conforme crescia, novas referências foram adicionadas a partir das camadas de suas próprias experiências. Aos 14 anos, a artista entrou pela primeira vez em um centro cultural e conheceu uma exposição de artes visuais. Foi quando se deu conta de que uma forma de expressão também poderia ser vista como um trabalho.
Um dos artistas da exposição estava no local e, de acordo com Dacordobarro, “alugou um triplex em sua cabeça” ao explicar que, embora seja importante estudar, não basta fazer um curso para ser artista: a arte tem uma relação profunda com experiências e vivências.
A conversa foi definidora de seu caminho. Dacordobarro, que já era envolvida com a fotografia desde os 10 anos, encontrou na arte uma forma de fuga dos papéis sociais que via atribuídos a si. Ela iniciou um trabalho incessante de pesquisa, aprofundamento e expansão de sua expressão por meio de técnicas como pintura, lambe-lambe, grafite, colagem e imagens digitalizadas.
Esta colagem que circulou por diversas exposições mostra a mesma rua da obra “Maior que as muralhas que criaram ao meu redor”. Pavimentada por cima de um rio, ela alaga quando chove. A artista aparece sentada tomando banho de cuia, hábito antigo de que gosta muito e que remete aos longos anos em que não teve água encanada em casa. Ela explica que o trabalho reflete sua percepção de que a natureza é a nossa mãe e a água do rio é o leite materno.
Sua determinação a levou até a Faculdade de Artes Visuais da Universidade do Amazonas, tornando-a a primeira pessoa de sua família a ser alfabetizada, frequentar uma universidade e viver experiências que não sejam um tipo de trabalho em que “a pessoa não é vista como um ser humano”. É a primeira também a poder “falar em primeira pessoa” e circular por outros espaços, num processo de “curas geracionais” em muitos sentidos.
O ensino superior lhe forneceu um conjunto de técnicas e aptidões, mas sua vivência pré-adolescente com a fotografia e a colagem tem profunda relação com seu trabalho até hoje. São essas as técnicas que possibilitam sobrepor memória, autoestima e percepção da cidade.
Dacordobarro conta que demorou muito tempo para entender a si mesma como uma cidadã dentro do espaço urbano, um lugar que também constrói cultura, tecnologia, ciência e saber.
Nesse sentido, a série de viagens que realizou pelo país a partir de 2015 foi fundamental. Em 2018, “cansada do racismo e da ausência de diálogo” que emergiram à sua volta com o novo contexto político, ela deixou a Região Norte e deu início a uma viagem de dois anos pelos estados do Maranhão, Ceará, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
Nesta colagem, o rosto da artista aparece parcialmente, exibindo um corte de cabelo “típico da quebrada, mais frequentemente utilizado por homens”. A obra retrata a sobreposição de acontecimentos, imagens, cheiros, memórias e pensamentos ao longo de uma tarde aparentemente rotineira em Manaus, quando ela saiu para cortar o cabelo, comprar pupunha e tomar um tacacá.
No canto superior esquerdo, um dos recortes mostra sua mão segurando seu primeiro celular, objeto que “permite que as pessoas dialoguem, mantenham vínculos”. Ela conta que sua mãe o guardou, assim como faz compulsivamente com todos os objetos de sua infância, garantindo acesso a memórias que de outra forma estariam ausentes da sua vida.
No canto direito, ao fundo, há ainda a imagem de um poste de luz, fragmento de outra obra pela qual Dacordobarro tem muito carinho, a intervenção urbana “Crianças são sementes”, realizada em Niterói. Repleto de ligações clandestinas de energia, o poste característico de periferias urbanas brasileiras é visto pela artista como a materialização da ideia de conexão e convivência entre pessoas, uma ambiência familiar e acolhedora.
A aventura terminou em 2020 devido à pandemia de Covid-19. Ao retornar a Manaus, pela primeira vez ela se reconheceu pertencendo à cidade. E se deu conta do quanto são preciosas e afetivas suas memórias daquele local que antes tinha um significado de violência e falta.
Com base nessa nova percepção, Dacordobarro passou a desenvolver a série “Manaus 40 graus” e outras em que investiga a relação de seu corpo de mulher negra, macumbeira, com a complexidade de viver a diáspora negra e indígena no centro de Manaus.
A circulação desses trabalhos tem lhe permitido conhecer outras pessoas, refletir, falar, superar preconceitos, e principalmente, recuperar ou construir a autoestima de ser manauara.
São três os nomes dessa artista extraordinária, escolhidos conforme a energia que se estabelece quando da criação de uma obra:
Kerolayne Kemblin é seu nome de registro.
Skarlati é o nome que sua mãe adotiva escolheu para ela, mas nunca chegou a oficializar. Ela só soube desse nome em 2020, quando encontrou uma antiga carta do irmão, que vivia em Fortaleza, perguntando por ela como Skarlati.
Já Dacordobarro é o apelido que ganhou aos dois anos, quando a família vivia numa palafita. Kerolayne sofreu um acidente e caiu num poço de barro que havia embaixo da casa. Foi a mãe quem a reanimou. O apelido ficou, inclusive porque o bairro em que viviam tinha tanta lama que seus pezinhos de criança estavam sempre sujos. É uma forma carinhosa de lembrar que renasceu nesse lugar.