Conhecer a obra de Carmézia Emiliano é mergulhar no esforço permanente da artista em registrar cada detalhe da cultura de seu povo, o Macuxi. Uma obra que em todo traço, cor, forma e cena reflete uma escolha, e é meticulosamente construída em coerência com seu “mantra”: “eu pinto para não esquecer minha cultura”.
Um desejo tão entranhado em sua pessoa que, quando indagada sobre o porquê de nunca ter pintado Boa Vista, cidade onde vive há mais de 30 anos, mostrou espanto com a ideia. Em depoimento à Concertação, explicou que, a cidade não lhe oferece memórias que queira pintar. “Quem sabe, um dia, eu pinto sobre indígenas que abandonam suas tribos e vêm para cá”, respondeu.
Nas telas de Carmézia, saltam aos olhos cenas do cotidiano macuxi, os mitos e os ritos, as festas, a relação com a natureza e os saberes ancestrais, pintados em cores fortes e repleto de detalhes. Seu olhar de mulher indígena também capta nuances da divisão do trabalho entre homens e mulheres em atividades como plantio, caça, preparo de alimentos e cuidado com as crianças. As cenas vívidas surgem em repetições, como um amuleto contra o esquecimento.
“Não presta dar o primeiro trabalho”
A artista nasceu na Maloca do Japó, aldeamento da etnia Macuxi na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), em 1960 e se mudou para Boa Vista no final dos anos 1980, em busca de trabalho. Foi lá que conheceu o marido, Léo Malabarista, artista circense, ao lado de quem passou a frequentar os círculos culturais de Roraima.
Em 1992, visitou sua primeira exposição de arte, que trazia obras de Eliézer Rufino, irmão do poeta Eliakin Rufino1. Ali, se deu conta do desejo de pintar também. Foi Eliakin quem a presenteou com uma tela e tintas para que fizesse uma experiência. Em depoimento a Roseli Anater2, Carmézia conta que não pensou em nada que quisesse pintar, mas inspirada numa tela de Eliézer que mostrava um buritizeiro, decidiu pintar um também. Ofereceu, então, o quadro “Veado no buritizeiro” a Eliakin, mas ele recusou explicando que “não presta dar o primeiro trabalho…”.
A partir de então, Carmézia nunca mais parou de pintar. De início, tendo dificuldade para comprar tintas, produziu as suas a partir de folhas, frutas, sementes e outros elementos da natureza, como narrou na entrevista:
“Eu mesma produzia tinta, com folha de pimenta malagueta, que é verde, e de algodão roxo, que é roxinha, e urucum, aquele que se chama colorau, jenipapo brabo, carvão, batatinha amarela, essas coisas que vêm da natureza. Eu fazia esse tipo de cores, machucava as folhas e aí desenhava no papel, não na tela, porque (essa tinta) a tela quase não segura. Então eu pintava no papel com essas cores”.
Na obra de Carmézia, a pintura é uma afirmação da cultura Macuxi
Seus temas vêm da vida e da cultura macuxi, que ela pinta para não esquecer e compartilhar com outras pessoas. Em suas palavras:
“Minha história é muito bonita, porque eu já nasci olhando, me criei olhando. Já nasci na natureza, me criei fazendo, me criei na comunidade, na mata, trabalhando na roça… Tudo o que minha mãe fazia eu olhava. (…) Eu coloco na tela essas memórias: fazendo beiju3, fazendo caxiri4, ralando mandioca, tecendo algodão, fazendo rede”.
As características de seu trabalho a colocam como uma notável representante da arte naïf no Brasil, movimento que utiliza tons brilhantes e alegres, formas simples e a idealização da natureza, em contraponto às técnicas artísticas mais usuais, como perspectiva, formas convencionais de composição e de uso das cores.
A trajetória da artista fora dos círculos roraimenses nas décadas seguintes é um reflexo do crescimento constante da qualidade da sua obra, valorização do seu estilo e da arte indígena.
Carmézia foi presença constante na Bienal Naïf do Sesc Piracicaba desde 2006 até 2020, ano a partir do qual experimentou franca consagração no circuito das artes contemporâneas. Desde então realizou mostras em museus, exposições e galerias de grande importância como o MASP (Museu de Arte de São Paulo), Bienal de São Paulo e Bienal das Amazônias em Belém (PA), bem como no exterior. Uma experiência que tem lhe dado a oportunidade de conhecer outros lugares, outros artistas e principalmente, mostrar sua cultura.
A obra de Carmézia inspira os canais digitais da Concertação
A partir de agosto de 2024, Carmézia traz para a identidade visual da Concertação a inspiração em dez telas: “Fazendo beiju”, “Araras”, “Contando histórias”, “Estudando”, “Fazendo panela”, “Moqueando peixe”, “Maloca do Contão”, “Quatis”, “Wazaká” e “Pescaria”, disponibilizadas pelo Acervo Augusto Luitgards. A artista falou sobre algumas delas.
ESTUDANDO (2022)
Na obra, que tem ao centro uma escola, uma professora ensina português e macuxi. Emiliano conta que desde que nasceu, jamais deixou de falar a língua de seu povo, mas sua filha não entende o idioma e muitos jovens preferem falar o português. Por isso, ao redor da escola, ela retratou os avós ensinando saberes tradicionais, destacando sua importância para a continuidade da cultura macuxi. São atividades como a confecção de redes, de tipiti5, trançar, desfiar algodão, fazer flechas e panelas de barro.
MOQUEANDO PEIXE (2022)
“Essa tela mostra como a gente vive. Porque a gente não tem mercado para comprar comida, a gente não tem dinheiro pra comprar linha de nylon, a gente vive de roça e de pescaria (…). Quando a gente vai pescar, a gente leva o jiqui6. São os homens e os meninos que estão pescando e as mulheres estão moqueando7 o peixe”.
WAZAKÁ (2022)
Mito fundador de diversos povos originários da Amazônia, Wazaká é o nome da Árvore da Vida e da lenda do surgimento do Monte Roraima. De acordo com o relato que Carmézia ouviu de seu tio, os irmãos Ariqué e Esquirã passavam fome porque não sabiam onde encontrar frutas. Eles tinham uma cotia e, um dia, o animalzinho dormiu com a boca aberta, revelando restos de frutas entre seus dentes.
No dia seguinte, Ariqué e Esquirã seguiram a cotia e encontraram essa árvore enorme. Como não havia frutas no chão, resolveram cortá-la para alcançar as que estavam no alto. A árvore caiu para o norte e é por isso que nessa região há muitas frutas. Da seiva que escorreu do seu tronco surgiram os rios Maô, da Guiana, Urariquera, da Venezuela e Branco, do Brasil. Então, Ariqué e Esquirã transformaram esse tronco de árvore em um monte, que hoje se chama Monte Roraima.
“Minha arte me leva a lugares em que eu nunca pensei chegar”
O desejo de Carmézia agora, é continuar pintando e mostrar seu trabalho fora do Brasil. Já expôs nos Estados Unidos, mas quer levar a cultura macuxi ainda mais longe.
“Se não fosse pela minha arte, eu não estaria conhecendo o mundo. Eu não esperava chegar a esses lugares com meu trabalho, mas fico muito feliz, porque tem sido muito importante mostrar minha cultura para o mundo inteiro”.
NOTAS
- Eliakin Rufino é poeta roraimense, escritor, filósofo, professor universitário, produtor cultural e jornalista. ↩
- Dissertação de Mestrado UFRR 2014: “Pintar para não esquecer: As narrativas visuais e orais de Carmézia Emiliano” (http://www.bdtd.ufrr.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=189) ↩
- Beiju: prato de origem indígena; tapioca ↩
- Caxiri: bebida alcoólica tradicional dos povos indígenas da Amazônia, feita à base de mandioca ↩
- Tipiti é uma espécie de prensa ou espremedor de palha trançada, usado para espremer, escorrer e secar raízes, normalmente mandioca. ↩
- Jiqui: Armadilha para pesca em rio, constituída por um cesto comprido e afunilado ↩
- Moquear: assar ou defumar peixe no moquém, grelha artesanal apoiada em forquilhas de madeira fincadas no solo ↩