Comissão Pró-Indígenas do Acre: Uma revolução educacional com raízes na cultura indígena 

Criada em 1979, em plena ditadura militar, a Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre) é uma organização não governamental nascida do encontro entre profissionais, estudantes e militantes que, ao lado dos povos indígenas, atuaram na defesa de territórios e direitos, inspirados pelo movimento de redemocratização do país e sob a liderança do antropólogo Terri Aquino.

Em entrevista à Concertação, Vera Olinda Sena de Paiva Vera Olinda Sena de Paiva: 40 anos dedicados à formação e à autoria indígena no Acre Acreana, nascida e criada em Rio Branco, Vera Olinda Sena de Paiva iniciou sua trajetória na CPI-Acre em 1982, inicialmente como voluntária. Seu ingresso oficial na instituição aconteceria três anos depois. Como coordenadora executiva da entidade, hoje Vera lidera a formação de agentes agroflorestais indígenas, mantendo viva a filosofia da CPI: unir educação, cultura e território. Em suas palavras, o indigenismo “não é uma escolha de trabalho, é uma escolha de vida — exige cabeça e coração”. , atual coordenadora executiva da CPI-Acre e integrante da organização desde 1982, contou que, no início, as prioridades eram a demarcação das terras e a proteção dos modos de vida tradicionais. Era uma resposta à exploração e às violações de direitos provocadas pela expansão da economia da borracha e da frente madeireira no Acre.

Com o avanço das mobilizações e a conquista de territórios, a Comissão viu-se diante de um novo desafio: como fortalecer as comunidades indígenas nas terras demarcadas? Para Vera, a resposta era clara: “ter a terra demarcada significava ter saúde, cultura, língua e educação.” Foi com esse propósito que, em 1983, a CPI-Acre iniciou sua atuação no campo educacional, em um movimento pioneiro que colocou os conhecimentos e práticas indígenas no centro dos processos de ensino e aprendizagem.

A cultura local como ponto de partida do conhecimento

Assim foi criado o primeiro curso de formação de professores indígenas do estado. Para implantá-lo, a coordenadora Nietta Lindenberg Monte aplicou os princípios pedagógicos de Paulo Freire, segundo os quais os povos indígenas definem o que, como e por que estudar.

A chamada “autoria indígena” partia de perguntas simples e potentes: “perguntar a esse grupo de alunos sobre onde e como eles desejavam ser alfabetizados e como estudar poderia ajudar seus povos. (…) É desenhar a escola que querem os povos indígenas”, conta Vera.  Essa abordagem rompeu com os modelos impostos pelos patrões seringalistas, pelo antigo Mobral (programa de alfabetização do regime militar), ou ainda, pelas missões religiosas, colocando a população indígena no centro do aprendizado.

A escola deixava de ser uma imposição externa e passava a refletir os modos próprios de aprender, ensinar e viver de cada povo. As primeiras turmas eram compostas por lideranças jovens indicadas pelas comunidades indígenas que, ao retornarem às aldeias, criaram suas próprias escolas. Nascia ali um modelo educacional em que a floresta era o currículo e a cultura local, o ponto de partida para o conhecimento.

Protagonismo indígena na criação de materiais bilíngues 

Entre 1983 e 2008, mais de cem títulos foram criados no âmbito do projeto “Uma Experiência de Autoria dos Índios do Acre”, que formou professores indígenas sob coordenação da CPI-Acre. Os formandos lideraram a construção de currículos interculturais, calendários próprios e a produção de materiais didáticos bilíngues, em línguas indígenas e português.

A turma inaugural criou os primeiros materiais didáticos bilíngues do Acre, como a “Cartilha Piaba”, que usava exemplos cotidianos — como “a piaba nada no rio” — para despertar o interesse pela leitura, como determina o método Paulo Freire.

Curso de Agentes Agroflorestais Indígenas no Centro de Formação dos Povos da Floresta

Outros materiais, como “O Jacaré Serviu de Ponte”, reuniam mitos, narrativas orais, grafismos e símbolos culturais como ferramentas de alfabetização e expressão. O grafismo (kenê) foi incorporado como exercício de escrita, unindo estética, memória e aprendizagem.

Com o tempo, o modelo de trabalho baseado na autoria indígena se tornou uma marca da CPI-Acre, presente em todas as ações de formação e de assessoria desenvolvidas pela organização. A partir dele, surgiram diversas metodologias pedagógicas, que têm em comum o foco na autonomia dos sujeitos e coletividades indígenas.

Da experiência local à Política Nacional

A formação de professores indígenas conduzida pela CPI-Acre foi uma experiência única no Brasil e rapidamente se tornou referência nacional. A partir dessa prática, o Acre passou a ser reconhecido como um dos berços da educação escolar indígena intercultural e diferenciada. Entre 1983 e 2008, a organização ofereceu cursos regulares de magistério indígena que logo foram reconhecidos pela Secretaria de Estado de Educação e pelo Conselho Estadual de Educação.

O modelo inspirou a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, formalizada em 1996, e dois anos depois, o Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas, coordenado por Nietta Lindenberg Monte no Ministério da Educação. Na avaliação de Vera, o que começou como um projeto experimental transformou-se em política pública, mostrando que reconhecer a diversidade linguística e cultural fortalece não apenas as comunidades indígenas, mas o próprio sistema educacional brasileiro.

Em 2008, com o aumento das escolas e alunos, a CPI-Acre  transferiu a coordenação do programa para o governo estadual, reafirmando que a educação é direito de todos e dever do Estado. No entanto, Vera reconhece que o sistema público não deu plena continuidade à educação diferenciada e o ensino indígena autônomo não tem recebido o apoio e os recursos de que necessita.

Novas frentes: pedagogia, agrofloresta e segurança alimentar

A partir de 2008, a CPI-Acre reorientou sua atuação, embora tenha mantido a formação como eixo central de novas formas de integração entre educação, território e sustentabilidade. Hoje, sua principal frente de ação pedagógica é a formação de agentes agroflorestais indígenas, que combinam educação intercultural, gestão territorial e inovação comunitária.

Seminário da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC). Foto: Acervo CPI-Acre

Em 2024, foi criada a Bolsa Agroflorestal Mulher, garantindo o ingresso das primeiras mulheres no programa. A organização também é parceira dos programas REM O Programa REM é uma iniciativa de valorização da proteção florestal. Lançado na Conferência Rio+20, em junho de 2012, o Programa incentiva a conservação das florestas e a redução de emissões de carbono como caminho de combate às mudanças climáticas. Acre Fase II e Acre na Escola: Comida Saudável e Sustentável, que integram educação, cultura e segurança alimentar. Essas novas parcerias reafirmam o papel da CPI-Acre- como elo entre conhecimentos tradicionais e políticas públicas contemporâneas.

Uma pedagogia viva, enraizada e atual

A trajetória da Comissão Pró-Indígenas do Acre mostra que educar é também afirmar autonomia e identidade. Ao criar condições para que os povos indígenas do Acre definissem seus próprios caminhos educacionais, a CPI-Acre inaugurou um modelo de escola enraizado no território e na cultura, que brota das comunidades e fala a língua da floresta. Mesmo diante dos desafios institucionais e de financiamento, o trabalho permanece vivo  — unindo educação, território e cultura como caminhos inseparáveis para o futuro da Amazônia.