Rita Huni Kuin desafia fronteiras visíveis e invisíveis por meio da arte

Rita Huni Kuin desafia fronteiras visíveis e invisíveis por meio da arte

Rita Huni Kuin se define como alguém que não escolheu a arte, mas que já nasceu dentro dela. Para a artista plástica autodidata, ativista, mãe e liderança indígena da aldeia Chico Curumim (AC), a cultura Huni Kuin Também conhecidos como Kaxinawá, este povo indígena habita a Floresta Amazônica desde o leste peruano, no pé dos Andes, até a fronteira com o Brasil, no Acre e no sul do Amazonas. é, em si mesma, uma arte. O artesanato, a pintura, a dança e os cantos são parte de seu cotidiano desde que nasceu.

Para os Huni Kuin, os grafismos, a multiplicidade de cores e as formas geométricas simbolizam a unidade existencial entre o mundo material e o espiritual, na qual os rituais da ayahuasca, ou nixi pae Nixi pae é a bebida cerimonial produzida a partir da ayahuasca (ou cipó bravo), planta que também é conhecida por hoasca, daime, santo daime ou iagê., possibilitam visualizar os espíritos da floresta, das entidades do universo e dos ancestrais.

A artista lida com esse universo à sua própria maneira. Sua obra reflete a forma como ela aborda, atravessa e contesta as fronteiras que a vida lhe apresenta, sejam estas espirituais, simbólicas, culturais, materiais ou territoriais, visíveis ou invisíveis.

Ela ressalta que os Huni Kuin veem seu território como um lugar no qual divisões humanas – como fronteiras políticas, territoriais ou aquelas existentes entre indígenas e não indígenas, não são importantes diante da imensidão e da interconexão do universo natural e espiritual.

Nas pinturas de Rita, a linguagem do espírito do povo Huni Kuin é traduzida em cor

Rita conta que os cantos da ayahuasca são muito difíceis de explicar em palavras, mesmo para os membros da etnia. Com a ideia de traduzi-los em forma de pintura, seu pai, Isaías Sales (Ibã), criou o aclamado coletivo MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin, do qual hoje ela faz parte.

Uma característica marcante da arte do MAHKU é a representação de elementos da natureza, da cultura Huni Kuin e do mundo da espiritualidade alcançado nos rituais nixi pae, por meio do uso intenso de cores vibrantes que, de acordo com Rita, “já são, por si, uma forma de tradução”.

O protagonismo das mulheres na cultura Huni Kuin é resgatado nas obras de Rita

O olhar crítico para os limites impostos às mulheres também se destaca em sua trajetória. Rita conta que iniciou seu percurso na pintura em 2009, quando seu pai criou o MAHKU. Inicialmente, tanto ela como sua irmã Yaká Huni Kuin não foram incluídas no coletivo, que teve a associação restrita aos homens. No entanto, inspiradas e provocadas pelo trabalho do pai e do movimento, elas desenvolveram uma linguagem própria, com traços femininos fortes e visões singulares da espiritualidade Huni Kuin. Com o tempo, a força de sua arte abriu o caminho para elas.

Rita lembra de um episódio determinante para sua entrada no MAHKU. Quando solicitada a apoiar uma exposição em Manaus, ela propôs à curadora algo novo: além das pinturas, a mostra deveria trazer os cantos da ayahuasca e a sua história. A ideia surpreendeu e impressionou seu pai que, a partir de então, passou a reconhecer sua contribuição para a valorização da cultura da etnia e permitiu sua associação ao coletivo.

“Quero mostrar que o mundo da arte pode ser muito mais preservado com as mulheres à frente” – Rita Huni Kuin

Para a artista, esse “machismo” não é um traço cultural próprio de seu povo. Trata-se de herança da colonização, do convívio com a sociedade não indígena. “Hoje, estamos lutando para retomar nossa antiga tradição matriarcal”, diz.

Um exemplo dessa tradição é a lenda que conta a origem da ayahuasca, que teria sido presenteada ao povo Huni Kuin pela mulher-jiboia. “Foi ela quem encantou o índio caçador Yube Inu. Ele provou da ayahuasca, teve visões e, quando morreu, virou a própria planta. A ayahuasca veio do povo da jiboia”, explica Rita.

Assim, sua produção artística naturalmente dá destaque às figuras femininas que representam forças ancestrais na cultura Huni Kuin. A tela abaixo, por exemplo, traz uma representação dessa mulher-jiboia-encantada, a Yube Shanu. Ao comentar a obra, Rita conta que “a primeira música que cantamos quando tomamos a ayahuasca é a ‘Yube Nawa Ainbu’ (mulher jiboia encantada). É uma forma de chamar a força”:

Já a pintura abaixo mostra a Muká, também chamada Mukani, uma figura ligada à planta de mesmo nome, considerada a mais poderosa na cultura Huni Kuin. A mulher Muká é símbolo de transformação e cura espiritual. Rita explica que a tela incorpora três elementos principais: a mulher, a jiboia e a aranha. Representado por suas teias, este animal foi quem ensinou as mulheres Huni Kuin a tecer. “Quando faço uma pintura inspirada na Mukani, eu a vejo como uma transformação de vida”, comenta Rita.

Por sua vez, a imagem a seguir revela outra forma de ver a mulher-jiboia, agora ligada ao canto das águas e à cura através delas. A luz que ela emana representa a força espiritual. O canto ritual representado aqui fala de animais aquáticos que enxergam de dia e de noite, uma metáfora para a visão espiritual. De acordo com a artista, “esse é o canto da cura que segue o caminho das águas. A água é a vida”.

A arte de Rita Huni Kuin é também uma poderosa manifestação sobre a complexidade das fronteiras em suas múltiplas dimensões: físicas, culturais, espirituais e políticas

Rita utiliza a arte como meio para desafiar as divisões estabelecidas e, ao mesmo tempo, reafirmar a união profunda entre os povos indígenas e a natureza, ultrapassando as barreiras criadas pelo colonialismo, pela modernização e pelas fronteiras nacionais. Sua obra reflete não apenas sobre as barreiras externas, mas também aquelas internas, que se relacionam com as percepções e as conexões humanas com o mundo ao nosso redor.

Em mais um exemplo da maneira como a artista explora essas inúmeras divisas, a tela abaixo traz sua representação da história do jacaré que serviu de ponte para a “travessia do conhecimento”. Esse mito fala sobre a separação entre o mundo indígena e o não indígena. O animal ajuda na travessia da fronteira entre os dois universos, representada pelo rio, mas desaparece quando lhe oferecem um filhote da sua própria espécie para que se alimente (símbolo de autodestruição). Segundo Rita, “o jacaré serviu de ponte para atravessar o conhecimento. Quem passou, passou; quem ficou, ficou”:

Kayatibu, a voz da floresta, mostra que não existem barreiras na arte

O ativismo indígena de Rita também a leva a desbravar outros territórios artísticos, pois para ela não devem existir barreiras entre as diferentes linguagens. Foi com base nessa premissa que ela participou em 2013 da criação do ponto de cultura e do grupo musical Kayatibu (“cura do espírito”), que reúne jovens indígenas artistas e comunicadores da região do Rio Jordão (AC). Atualmente, a sede do Kayatibu é um ponto de encontro também para os mais velhos de diversas aldeias Huni Kuin.

A imagem acima foi criada pela artista para ser a capa do primeiro álbum do Kayatibu, disponível em plataformas de streaming. A obra mostra a Sumaúma como símbolo de conexão com a floresta. Para Rita, essa árvore está relacionada às cores, à música e à força da floresta. Ela representa o canto, a espiritualidade e a colaboração entre músicos tradicionais da floresta e os profissionais da cidade.

‘Vendo tela, compro terra’ é lema para atravessar o caminho para o futuro

A insegurança territorial dos povos indígenas é uma barreira objetiva à preservação da cultura Huni Kuin. Porém, para Rita, tornou-se uma oportunidade de estabelecer uma conexão entre sua obra e o ativismo indígena. Como parte do MAHKU, a artista abraçou o lema “vendo tela, compro terra”, que faz da arte uma estratégia de soberania territorial.

Seu pai, Ibã, idealizou essa proposta durante o governo Bolsonaro como reação à insegurança fundiária enfrentada pelos povos indígenas naquele período. O propósito é a aquisição de terras para protegê-las do desmatamento, além de manter vivas suas tradições. “Conforme vendemos nossas obras, compramos terra para proteger. Não é para criar gado, é para plantar, reflorestar, acolher. É pensar no futuro, nos netos, nos bisnetos”, ela explica.

A consolidação da carreira artística tem favorecido a concretização desse objetivo. Entre as conquistas de Rita, estão a participação em exposições por todo o Brasil e também no exterior. Hoje, sua arte alcança novos territórios e constrói conexões com inúmeros outros povos. Em 2024, além de ter sido indicada ao Prêmio Pipa, participou de turnês anuais pela Europa junto com outros artistas, principalmente Alemanha e Reino Unido.

“Quero construir uma casa de arte onde a gente possa viver a cura, a criação e a troca. A fronteira, para mim, é uma troca de sabedoria – um atravessamento positivo” – Rita Huni Kuin

Hoje, a artista sonha em construir uma “casa de arte” para receber artistas indígenas e não indígenas em residências, fortalecendo intercâmbios, trocas e a espiritualidade, assumindo seu destino de “atravessadora de fronteiras”.

Ao ser questionada sobre o que deseja despertar nas pessoas com suas pinturas, responde sem hesitar: “quero que elas sintam, no coração, um pedacinho da floresta. Que mesmo sem entender o que estão vendo, possam se conectar com a alma daquela imagem”.

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